. . .

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Honra ao Mérito

   

Sou do tempo da medalha de honra ao mérito. Alguns podem argumentar que existiam medalhas demais naqueles idos, e é verdade. Medalhas militares de governantes biônicos. Mas essas faziam parte de um outro universo.

As minhas medalhas, essas a que me refiro, eram obtidas na escola sempre que um aluno se destacava por qualquer motivo em qualquer área. Era um tempo de Honra. E Mérito. Assim mesmo, com letras maiusculamente garrafais. Os pais se orgulhavam dos seus filhos quando esses eram laureados e, quando não o eram, incentivavam os pequenos para tal. Aqueles pequenos símbolos de sucesso eram pregados orgulhosamente em quadros nas paredes dos quartos ou, quando não havia possibilidade e espaço, em caixas de sapato primorosamente promovidas a um tipo de baú de tesouros.

Os professores, por sua vez, faziam a sua parte como catalisadores desse processo salutar de saltos quânticos de aprendizado e saber. Hoje, é muito duro constatar, a honra já não significa muito e o mérito vale absolutamente nada. Senão, como explicar professores da rede estadual de São Paulo protestando nas ruas CONTRA a meritocracia como balizadora de salários? Pergunte-se a esses pretensos educadores: existe outra saída para uma classe que forma alunos analfabetos funcionais?

Alguns dizem que essa era uma manifestação derivada de uma greve política. Mas, calma aí! As tendências e vertentes políticas não deveriam andar distante da educação? Ou será que percorremos tão pouco caminho desde o tempo dos quepes no poder? Ali sim, as escolas e professores eram obrigados a determinadas linhas de conduta e ensino. Mesmo assim, ousada e bravamente, esses educadores de então resistiam e, pasmem as novas gerações, ensinavam! Isso por amor ao ofício e à responsabilidade de professor, correndo, muitas vezes, riscos pessoais.

Por outro lado, e como um espelho distorcido e às avessas, nossos professores de hoje limitam-se não a resistir, mas a vestir a carapuça pelega de um pretenso poder popular que honra o demérito, a ignorância e o semi-analfabetismo.

Onde vamos parar? Lutei em passeatas amarelas pelo direito de viver em um estado democrático e de direito. É hora de questionar: Existe democracia e direito onde não há honra ou mérito?

É óbvio que não.

 
 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Leitura Obrigatória

  

O AI-13 dos militontos

Artigo de Reinaldo Azevedo

A exemplo dos contestadores do filme A Vida de Brian (alugue hoje mesmo), do grupo inglês Monty Python, os inimigos atuais da civilização perguntam em tom desafiador e eu lhes respondo com os fatos:

O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, 'Ato Institucional nº 13'. Os 'direitos humanos' são, no AI-13, o que a 'segurança nacional' era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.

– O que foi que esse modelo nos deu?

– A democracia!

– É verdade! Ele nos deu a democracia. Fora a democracia, o que foi que esse modelo nos deu?

– A segurança jurídica!

– É, ele nos deu isso também. Fora a democracia e a segurança jurídica, o que nos deu esse modelo?

– A igualdade perante a lei!

– Tá bom, vá lá. Fora a democracia, a segurança jurídica e a igualdade perante a lei, o que é que esse maldito modelo nos deu?

– As vacinas?

– Além da democracia, da segurança jurídica, da igualdade perante a lei, das vacinas, respondam: o que nos deu esse modelo?

– Os antibióticos!

– Perguntarei pela última vez: sem contar a democracia, a segurança jurídica, a igualdade perante a lei, as vacinas e os antibióticos, que diabos nos deu esse modelo?

– O vaso sanitário!

– Ora, cale-se!

A Conferência de Cultura, realizada há pouco mais de duas semanas, reuniu essa gente pitoresca que poderia ter saltado da tela do filme do Monty Python e definiu como uma das 32 prioridades de governo "registrar, valorizar, preservar e promover as manifestações de comunidades e povos tradicionais, itinerantes, nômades, das culturas populares, comunidades ayahuasqueiras" e por aí vai. Isso deve ser feito com recursos do estado, o Leviatã transformado em incubadora de estranhezas. Se você, leitor, não se encaixa em nenhum dos grupos acima, então é só um "entre outros", integrante de uma maioria que encarna aquela outra "tradição", permanentemente saqueada por particularismos. Refiro-me à velha e desprezível civilização ocidental, com o seu opressivo culto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada, à língua pátria, às vacinas e aos antibióticos. Essas bobagens que nos têm causado tantos dissabores e que afastam o homem da sua "verdadeira essência".

O caso dos "ayahuasqueiros", os consumidores do daime, é emblemático. Eu não sei qual é a "verdadeira essência" do homem. Talvez eles saibam. Parece que a bebida os ajuda a chegar lá. Só não entendi por que essa "cultura" tem de ser protegida pelo estado, que deve, segundo a proposta, investir dinheiro público na sua difusão. Gilberto Gil, quando ministro, encaminhou um processo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que o uso do chá seja considerado "patrimônio imaterial do povo brasileiro", ainda que você, leitor, reacionário como é, não tome nada além de chá de camomila. Os mais ousados arriscam contornar a melancolia desta vida besta com Prozac ou Zyban, que vieram à luz depois de muitas décadas, e milhões de dólares, de pesquisa. Os antidepressivos podem merecer uma ode, jamais uma litania; no máximo, um canto pagão, nunca um hino místico.

A proposta da conferência é um sintoma, não o mal em si. Não tenho sobre o futuro uma visão apocalíptica ou redentora. Não aposto nem em danação nem em salvação. A história não tem epílogo. Há uma perspectiva bem menos dramática do que o fim dos tempos. É a mediocridade, a vida das exigências rebaixadas. No Brasil e mundo afora, uma atmosfera de boçalidades doces e caridosas, excepcionalmente violentas, vai espalhando os seus miasmas. A língua alemã tem uma palavrinha bacana que merece entrar neste texto: Zeitgeist, ou "espírito do tempo". Esse espírito anda muito propício ao assalto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada e à língua pátria – e isso serviria à construção do "novo homem". As velhas esquerdas acreditavam que o comunismo era o portal da nova era. Deu errado. As novas esquerdas desistiram de reinventar a civilização. Dá muito trabalho. Basta-lhes depredá-la.

Essa depredação da ordem democrática exige agora o patrocínio do estado e é promovida por seus próprios agentes. Em duas conferências, a de comunicação e aquela de cultura, os militantes aprovaram propostas que, se aplicadas, resultarão em censura à imprensa. O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, "Ato Institucional nº 13". Os "direitos humanos" são, no AI-13, o que a "segurança nacional" era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.

Lula chegou à síntese perfeita "dessa nova segurança nacional" na semana passada, quando atacava, mais uma vez, a imprensa: "É triste quando a pessoa tem dois olhos bons e não quer enxergar. Quando a pessoa tem direito de escrever a coisa certa e escreve a coisa errada". As ditaduras costumam cassar do jornalismo o direito de escrever certas coisas. Mas só os regimes totalitários se arvoram em decidir o que é "certo" ou "errado". As ditaduras não têm vergonha de se impor pela violência. O totalitarismo, violento se preciso, quer se impor como senhor da virtude. O AI-5 foi pensado para uma ditadura; o AI-13, que pune quem "escreve a coisa errada", para um regime totalitário. Aquele só podia ser imposto debaixo de porrete; este outro tem o apoio entusiasmado de supostos "representantes da sociedade civil", as "minorias organizadas", e espera contar com nossa sujeição voluntária.

As tropas de assalto à ordem democrática estão ativas. Um desses ongueiros financiados pela Fundação Ford justificou assim o "caráter democrático" do programa de direitos humanos: "Ele foi debatido por 14.000 pessoas!". É mesmo? Um deputado federal em São Paulo precisa de, no mínimo, uns 100.000 votos para ter direito a ser apenas um voto na Câmara. Um senador precisa de mais de 8 milhões! Os militontos pretendem destruir o valor universal da democracia com o apoio de 14.000 sectários...

"Estou com saudade dos velhos marxistas", pensei alto outro dia em conversa com Diogo Mainardi. Ele respondeu com uma surpresa silenciosa, o que me permitiu emendar: "Você se lembra do tempo em que a gente contestava um pensamento que, por mais cretino que fosse, ainda aspirava à condição de um humanismo? Sabíamos que as teses daquela gente, quando aplicadas, haviam resultado no horror. Mas tínhamos de combater um aparelho teórico que, embora construído com mentiras, tinha ao menos bibliografia. Hoje restaram a barbárie, a pistolagem e a ignorância escandalosa". Eu estava, leitor, sob o efeito de uma terrível droga moral, que havia chegado ao blog na forma de um comentário.

VEJA noticiou na semana passada que Delúbio Soares, aquele!, foi patrono de uma turma de formandos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba, no interior de Goiás, uma instituição pública. Ele pagou 6.000 reais e deu uma palestra sobre "ética na política". Abordei o assunto e recebi uma mensagem de um professor da escola, membro do PT local. Numa língua entre o português e o javanês antigo, ele tentou me explicar: "Temos um entendimento sobre o mensalão bem mais amplo. Não achamos que a criminalização das pessoas que são acusadas de praticarem atos semelhantes (financiamento de campanha com dinheiro não contabilizado) venha resolver os problemas de corrupção de nosso país"... Ele tem razão. O entendimento civilizado dessa questão é mesmo menos amplo: lugar de bandido é na cadeia.

A civilização vencerá no fim? Essa história não tem fim. Estaremos sempre no começo.

  

Os Filhos do Lixo

Lya Luft-Veja (12/4/2010)


Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje.

Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome.

A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né?".

O relato dessa quase adolescente e o de outras eram parecidos: todas com filhos pequenos, duas novamente grávidas e, como diziam, vivendo a sua sina – como sua mãe, e sua avó, antes delas. Uma chorou, dizendo que tinha estudado até a 8ª série, mas então precisou ajudar em casa e foi catar lixo, como outras mulheres da família. "Minha sina", repetiu, e olhou a filha que amamentava. "E essa aí?", perguntou a jornalista. "Essa aí, bom, depende, tomara que não, mas Deus é quem sabe. Se Ele quiser..."

Os diálogos foram mais ou menos assim; repito de memória, não gravei. Mas gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo. Sentadas sobre o lixo. Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo. Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso.

Não sei como é possível alguém dizer que este país vai bem enquanto esses fatos, e outros semelhantes, acontecem. Pois, sendo na nossa pátria, não importa em que recanto for, tudo nos diz respeito, como nos dizem respeito a malandragem e a roubalheira, a mentira e a impunidade e o falso ufanismo. Ouvimos a toda hora que nunca o país esteve tão bem. Até que em algumas coisas, talvez muitas, melhoramos. Temos vacinas. Existem hospitais e ensino públicos – ainda que atrasados e ruins. Temos alguns benefícios, como aposentadoria – embora miserável –, e estabilidade econômica aparente. Andamos um pouco mais bem equipados do que 100 anos atrás.

Mas quem somos, afinal? Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem. Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer?

Pelo menos, reclamar. Achar que nem tudo está maravilhoso. Procurar eleger pessoas de bem, interessadas, que cuidassem dos lixões, dos pobrezinhos, da saúde pública, dos leitos que faltam aos milhares, dos colégios desprovidos, de tudo isso que cansativa mas incansavelmente tantos de nós têm dito e escrito. Que pelo menos a gente saiba e, em vez de disfarçar, espalhe. Não para criar hostilidade e desordem, mas para mudar um pouquinho essa mentalidade. Nunca mais crianças brasileiras sendo filhas do lixo, nem mães dizendo que aquela é a sua sina, porque Deus quer assim.

Deus não quer assim. Os deuses não inventaram a indiferença, a crueldade, o mal causado pelo homem. Nem mandaram desviar o olhar para não ver o menino metendo avidamente na boca restos de um bolo mofado, talvez sua única refeição do dia. E, naquele instante, a câmera captou sua irmãzinha num grande sorriso inocente atrás de um par de óculos cor-de-rosa que acabara de encontrar: e assim se iluminou por um breve instante aquela imensa, trágica realidade.