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domingo, 25 de outubro de 2009

Resenhando Williams

           

Assisti ao último espetáculo da temporada paulistana dessa que é uma das peças mais montadas de Tennessee Williams e, segundo a análise histórica, a mais auto-biográfica delas. Trata-se de “O Zoológico de Vidro”.

Parto desse fato pois o que poderia ser apenas uma contingência de tempo e espaço acabou por emoldurar uma história pungente de uma família à beira do destroçar. Consequentemente, se existe um adjetivo que poderia se aplicar para definir essa peça de Williams com uma só palavra seria “último”. O último sopro que apaga as velas e todas as esperanças na cena final. As últimas esperanças e sonhos de algo palpável do ponto de vista da mãe que se esvaem pelos seus dedos maternais. Último suspiro de uma família já há muito atingida pelos dissabores do destino.

A família em questão é o pequeno clã dos Wingfield, formado pela mãe, Amanda, um filho, Tom e uma filha, Laura. Esse triângulo de sensações e emoções poderia passar como banal se não resumisse de forma magistral os efeitos e vicissitudes de todo um tempo e época e, porque não, da maioria das relações familiares e cotidianas de cada um de nós.

Todo o desenrolar da peça se dá à sombra opressiva do retrato do pai na parede, que fugiu de casa e abandonou a família à própria sorte. É esse o ponto de partida para todos os efeitos e consequências desse ato sobre os demais componentes desse núcleo de pessoas que partilham de uma existência titubeante.

Narrada pelo filho Tom (Kiko Mascarenhas), a peça se desenrola num clima denso e obscuro. A iluminação é, na maior parte do tempo, tênue, e apesar de alguns diálogos terem uma vertente cômica, principalmente aqueles relacionados ao papel da matriarca que herdou toda a responsabilidade da família, os risos são nervosos. Nada é leve ou escapa do escrutínio cruel de uma vida que não demonstra fôlego suficiente para perdurar.

Tom pretende seguir os caminhos do pai e abandonar a família a qualquer momento. A mãe, exemplo clássico da nostalgia de um passado de glórias perfeitamente sintetizada por uma Scarlet O’Hara citada no texto, incorpora toda a decadência e derrota que até hoje, anos e anos após a guerra civil, ainda assola os americanos do sul. A cena em que ela busca o vestido antigo que lhe servia quando era cortejada por grandes fazendeiros é comovente. A entrada dela vestida de gala com esse mesmo vestido para o encontro do pretenso pretendente à mão de Laura cheira a naftalina e piedade. Nada mais que restos rotos de um passado de glória.

E por falar em Laura, chegamos aqui ao nervo mais exposto de toda a história. Interpretada por Karen Coelho de forma extremamente sensível, Laura é a filha mais atingida pela história emocionalmente distorcida da família. Para coroar seu papel de alvo primordial de todos os efeitos nefastos do dia-a-dia desse tabuleiro familiar, ela possui um defeito físico em uma das pernas que a impede de andar normalmente. De “defeito aparentemente imperceptível” para “aleijada solteirona” é uma questão de tempo e circunstância. Não existem filtros nessa onda de sentimentos, culpa e auto-piedade que assola a personagem. Tudo isso acaba sendo externado pela sua extrema timidez.

Em uma metáfora magnífica em sentido e significado, toda a delicadeza e fragilidade de Laura se projetam e ganham corpo no seu único hobby, que ocupa seu tempo após a desistência da escola, dos cursos tentados posteriormente e do viver, enfim: uma coleção de objetos e pequenos animais de vidro, a que a mãe denomina de “zoológico de vidro”.

Essa coleção frágil e bela, que resplandece aos poucos raios de luz que emanam da cena, permanece o tempo todo à vista do público. A cada conflito espera-se que alguém esbarre e destrua toda a frágil estrutura de madeira que mantém os objetos expostos. E essa sensação de insegurança e de que tudo pode desmoronar a qualquer momento acompanha os espectadores todo o tempo do espetáculo, deixando no ar um sentimento incômodo que é argumento e objetivo do texto.

Anunciado já no início da peça como um “símbolo” pela narração de Tom, surge, na segunda parte do espetáculo, a figura do amigo Jim O’Connor (Erom Cordeiro), seu colega de trabalho e ícone de paixão não correspondida de Laura nos tempos do colégio. Essa coincidência entre o personagem de um encontro que deveria ser entre um desconhecido aspirante a pretendente, e a pessoa que já figura há tempos nos álbuns mais secretos da menina, faz com que a mágica se faça e que Laura viva aquele que poderia ser o momento que daria um fim a uma existência sem sentido.

Apesar de infrutífero pelo fato de ele já estar comprometido, o diálogo entre os dois mostra empatia e uma fresta de luz para a auto-estima debilitada de Laura. A simbologia representada pela miniatura de um unicórnio de vidro que é quebrada na dança entre os dois fazendo com que o pequeno animal perca o chifre deixando-o semelhante aos outros cavalos e, portanto, afastando-o da situação de “aberração” é poética e emocionante.

Entretanto, essa fresta de luz logo se esvai. Na cena final, após a saída do amigo Jim e da partida efetiva de Tom, narrada por ele mesmo que acaba por abandonar a família para viver uma vida de aventura, a atitude da pequena e frágil Laura é definitiva e comovente. Ela apaga uma a uma as velas do candelabro que ainda lançam alguma luz sobre a cena. É o fim. A última possibilidade daquilo que poderia se chamar de família se esvai na escuridão. E é nessa escuridão que percebemos que todos nós estamos muito mais próximos da circunstância de fragilidade exposta pelas pequenas peças daquele zoológico de vidro do que supúnhamos.

No final, um ato de generosidade e um discurso emocionante de Cássia Kiss, que interpreta a mãe, Amanda, fecharam com chave de ouro essa rara oportunidade de assistir a uma montagem tão apurada de Tennessee Williams. Nos agradecimentos finais, fugindo do esquema de praxe, ela chama a pequena-grande Karen Coelho para um abraço apertado e um grande beijo de agradecimento. Ela ainda agradece, também, a todo o público paulista por entender, aceitar e reconhecer o que é o verdadeiro teatro, que é sua paixão.

Foi um momento de grande emoção que me fez descer as escadas rolantes da saída do teatro com um nó da garganta e a voz embargada. Tudo isso abençoado pelas imensas imagens de Raul Cortez, que empresta seu nome àquela sala de espetáculos.

Saravá!

        

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Correr na Praia

    




Corro no parque.

Sou um dos privilegiados que, mesmo numa megalópole, possui o privilégio do acesso fácil a uma área verde. No caso, o Ibirapuera, local lindo com nome sonoro e tradução absolutamente descritiva e desprovida de qualquer glamour na nossa língua-mãe tupi: pau podre.

De fato, basta uma chuvinha para que o parque resgate sua característica original e natural de brejo. É quando se percebe a impotência do homem em relação às mudanças das quais se considera capaz sobre a natureza. Mas, entretanto, não é disso que se trata esse texto. Fica para a próxima. Voltemos à corrida.

Correndo, pois, pela pista de cooper do parque, lembrei-me de que, algumas semanas atrás, estive no Rio de Janeiro a trabalho. E, como sempre que possível não descuido da minha corrida diária, assim o fiz na orla de Ipanema e Leblon tão familiar e conhecida desde meus tempos de infância.

Foi a partir dessa reminiscência de tão recente memória que me veio à mente uma discussão sobre um tema banal que ocorreu por lá e que se resumia à questão sobre o que é melhor, correr na praia ou no parque?

Obviamente que a primeira resposta, inclusive daqueles que moram em São Paulo e possuem um parque na porta de casa como era o caso do meu interlocutor, é líquida e certa: Praia. Pois bem; Ocorre que entre o escorrer de uma gota de suor e outra, dei-me conta que o banal escondia um pressuposto bem mais interessante que possui uma grande influência no imaginário humano e, por consequência, nas nossas escolhas e sonhos cotidianos.

Para quem não conhece o meu aeróbico espaço, imagine-se o ambiente comum a tantos outros parques. A pista onde eu corro é guardada por gentis sombras de árvores frondosas que deixam a temperatura amena e agradável. Os carros que circulam no entorno do ex-brejo mantêm-se a uma distância tal que faz com que seu ruído seja apenas uma lembrança sutil. E, para completar, sabiás, bem-te-vis e outros pássaros dão o ar de uma graça despudorada característica daqueles animais que já se acostumaram com a presença humana e não estão nem aí para ela. São passarinhos cosmopolitas, que cantam e tocam a vida sem se incomodar com o que outras criaturas estão fazendo ao lado.

Transportemo-nos agora, pois, para minha corrida na sem dúvida visualmente maravilhosa Ipanema, com Dois Irmãos ao fundo. Trata-se de um cartão postal lindo de se ver, e péssimo para se correr. O sol é inclemente, o ruído dos carros e ônibus que passam a apenas metros (às vezes centímetros) da ciclovia é ensurdecedor e trazem como brinde muita, muita fumaça. E a praia, idílica imagem, lá longe, parece um filme mudo de ondas silenciosas, uma vez que todo o ruído que poderia ser relaxante do quebrar das águas não é páreo para o motor a combustão.

Fato claro é que estamos tratando aqui de grandes cidades como São Paulo e Rio, e não qualquer um dos muitos lugares idílicos que ainda restam por essas paragens tropicais. Entretanto, paralelos colocados, como explicar o fascínio pelo correr na praia? Foi nesse ponto da indagação que a resposta veio nítida à minha mente: o fascínio pertence não ao ato, mas ao simbolismo. Quando as pessoas falam ou até mesmo praticam o correr na praia (e são muitas), transportam-se para uma grande ilusão coletiva, um cenário cognitivo que está colado lá nas mais profundas paredes do ser e que remete a uma praia deserta, cheia de coqueiros, com brisa e sons naturais. Trata-se de uma sensação ancestral que se transforma em experiência muitas vezes nunca tida, e que é prima-irmã do cavalgar na praia, sem sela ou laços, na mesma superfície de areias finas embrulhada de vento e liberdade, entre tantas outras.

Nisso tudo, o mais interessante é como nos deixamos enganar pacífica e tranquilamente por esse mecanismo que nos remete ao símbolo, à sensação, e não ao fato. Ao “correr na praia”, mergulhamos em um universo muito mais amplo e profundo que ignora as grandes avenidas e os sinais aniquiladores do progresso representado pela urbanidade. Temos essa facilidade. Colecionamos arquétipos que nos fazem aceitar e acreditar que vivemos determinadas experiências mesmo que a realidade seja muito distante daquilo que imaginamos, apenas aproveitando-nos de um elemento lúdico que faça parte de uma determinada fantasia comum.

Nessa mesma linha encontram-se os lugares da moda e o viajar no feriadão, por exemplo. O que explica o ato de transportar-se com armas e bagagens, família, sogra, cunhados e periquitos para um final de semana prolongado de filas e privações nos grandes balneários? E aquele lugar que não é tão bom assim, mas que é fundamental para seu “curriculum social” que você tenha estado lá? A resposta está no intangível. Na ilusão coletiva que reside muitas vezes no universo da irracionalidade. E na rede fina das aparências sobra apenas o “Estive em tal lugar no feriadão e foi ótimo! Você perdeu!” ou “Você ainda não esteve nesse lugar? Precisa ir. É imperdível!!”

Pois sim, a existência humana é, definitivamente, surpreendente. Como ocorre na circunstância de uma veia obstruída no sistema sanguíneo, o viver encontra outros caminhos que fazem correr sua seiva para que a essência da alma permaneça firme e angarie suas recompensas. Trata-se de mágica extra-humana. Ilusionismo que faz com que a vida se perpetue com o conforto mínimo de experiências que possuem sua parcela de êxtase encravada num parecer - ao mesmo tempo lúdico e irreal - que extrapola a experiência em si.

Ah, o ser humano... Quanto pensar numa simples corrida por um brejo disfarçado!
                  

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Frase do dia

             

"A vida é matemática elementar realizada com números complexos."


             

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Resposta a Martha Medeiros - Os Ausentes

         

Prezada Martha,

Sou um admirador seu. Aprecio seus textos como quem aprecia um bom vinho, que alimenta, aquece e embriaga levemente.

Ainda, e já isentando esse texto de qualquer condenação, não creio em super-seres. Homens ou mulheres. Gente é assim. Falha. Os melhores maratonistas tropeçam, os melhores malabaristas caem. É simples e humano.

Aproveitando essa deixa, olha, Martha, coitado do Joaquin... Julgado e crucificado entre as suas linhas por um equívoco de pensamento daqueles que acontecem de vez em quando. A gente acorda mal, aquele gosto ruim na boca e na alma, e é obrigado a cumprir uma tarefa extremamente ingrata naquelas condições físicas e mentais. Escrever ou pegar numa enxada, dar uma entrevista ou ir para uma reunião no escritório, não importa. Fazer as coisas contra a vontade, ao contrário do que você afirma, dói sim. E quanta dor e cansaço há nesse texto, não?

Sou um defensor do viver de dentro para fora. O resto são condições e regras de comportamento geralmente arbitrárias com as quais a gente, sim, é obrigado a conviver mas absolutamente não precisa partilhar, absorver ou mimetizar. Expressar essa verdade é legítimo. Disfarçá-la com sorrisos frios é lobotomia social.

Martha, querida, que fique claro mais uma vez que estou aqui lhe defendendo e não acusando. Gostaria mesmo que você tivesse ficada deitadinha, encolhidinha, posição fetal, nesse dia aparentemente tão azedo. Viu só no que deu você se esforçar para sorrir para a platéia? Não deu certo. É chato. Compromete a gente. Vale a descompostura?

Existem diversas brechas no seu texto ótimas para se encaixar algumas bananas de dinamite, mas sua inteligência não permite certas incoerências e, assim que você as comete, a escritora sagaz trata de sabotá-las mesmo que instintivamente.

Explico: você mesma diz "quando uma pessoa se dispõe a dar uma entrevista..." e pronto. Dinamite aí. Quem disse que o coitado do Joaquin se dispôs? E a santa maria do rock? Será que ambos não preferiam ficar tranquilamente na mansão deles, na mesma posição fetal que é democraticamente comum a todos?

Realmente não há super-seres. Existem é super-contratos que nos obrigam a determinadas coisas, assim como maridos insensatos e esposas insensíveis que chantageiam por caminhos tortos. Nesses casos, Martha, grosseria é obrigar alguém e exigir que esse alguém não expresse o descontentamento com um ou outro muxoxo. A cara feia aqui é legitimidade. É defender implacavelmente a humanidade. Decerto o Quinzinho preferiu ouvir o que ouviu do Letterman a ser mais uma entrevista sonolenta, morna e sem sentido. Palmas pra ele.

Mas, Marthinha, é bom deixar patente nessa altura do papo que sua obra lhe redime. É crueldade se ater a esse texto quando o conjunto é tão generoso e brilhante. Melhor esquecer. Ou melhor, não...

...Vale ainda um confete: você é boa até quando é ruim. Senão, analisemos sua última frase agora com a mente mais clara. Há uma incongruência ali que entrega a inconsistência do raciocínio mas nos permite um reparo. O "se não quiser participar, tudo bem..." é perfeito, mas não combina com o ser obrigado pelo marido, mulher ou quem quer que seja a fazer o que não se quer e sorrir socialmente para não ser grosseiro. Uma coisa elimina a outra e o tropeço vem.

Vamos assumir o conflito: devemos, sim, brigar para não sermos obrigados a determinadas coisas e, quando o somos, não há a obrigação de sorrisos-de-mona-lisa. Aqui, nessa sua última linha e ao contrário das regras matemáticas, a ordem dos fatores altera o produto. Permita-me:

"Melhor (para a humanidade) uma ausência desaforada do que uma presença meramente honesta"

Perdoe-me a ousadia.

Abraços.




Os Ausentes - Martha Medeiros

Eu não assisti ao programa, mas soube da história. O jornalista David Letterman recebeu Joaquin Phoenix para uma entrevista. O ator fez juz à fama de bad boy: não parou de mascar chiclete e só respondia com monossílabos e grunhidos, não facilitando o andamento da conversa. Letterman tentou, tentou e, como não conseguiu arrancar nada do sujeito, encerrou a entrevista com uma tirada que me pareceu perfeita: “Joaquin, uma pena que você pôde vir esta noite.”

Quando uma pessoa se dispõe a dar uma entrevista, tem que entrar no jogo: responder com generosidade ao que foi perguntado e valer-se de uma educação básica, caso tenha. É bom lembrar que a maioria das entrevistas não é feita apenas para dar ibope ao programa, e sim para ajudar na divulgação de algum projeto do convidado. Ambos saem ganhando. Só quem não ganha é a plateia quando o convidado finge que está lá, mas não está. Madonna é até hoje o trauma da carreira de Marília Gabriela, pelos mesmos motivos.

Claro que há quem defenda a atitude de Phoenix com o argumento da “autenticidade”, mas existe uma sutil diferença entre ser autêntico e ser grosso. É muita inocência achar que podemos prescindir de uma certa performance social. Espero não estar ferindo a sensibilidade dos “autênticos”, mas de um teatrinho ninguém escapa, a não ser que queiramos voltar a viver nas cavernas.

Não sou de me irritar facilmente, mas acho um desrespeito quando uma pessoa faz questão de demonstrar que não compactua com a ocasião. São os casos daqueles que se emburram em torno de uma mesa de jantar e não fazem a menor questão de serem agradáveis. Pode ser num restaurante ou mesmo na casa de alguém: estão todos confraternizando, menos a “vítima”, que parece ter sido carregada para lá à força. Às vezes, foi mesmo. Sabemos o quanto uma mulher pode ser insistente ao tentar convencer o marido a participar de um aniversário de criança, assim como maridos também usam seu poder de persuasão para arrastar a esposa para um evento burocrático. Não importa a situação: saiu de casa, esforce-se. Não precisa virar o mestre de cerimônias da noite, mas ao menos agracie seus semelhantes com dois ou três sorrisos. Não dói.

Dentro da igreja, ajoelhe-se. No estádio de futebol, grite pelo seu time. Numa festa, comemore. Durante um beijo, apaixone-se. De frente para o mar, dispa-se. Reencontrou um amigo, escute-o.

Ou faça de outro jeito, se preferir: dentro da igreja, escute-O. Durante um beijo, dispa-se. No estádio de futebol, apaixone-se. De frente pro mar, ajoelhe-se. Numa festa, grite pelo seu time. Reencontrou um amigo, comemore.

Esteja, entregue-se.

Se não quiser participar, tudo bem, então fique na sua: na sua casa, no seu canto, na sua respeitável solidão. Melhor uma ausência honesta do que uma presença desaforada.
   
           

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Resposta tardia a Clarice Lispector


     
  Autoria José Castello       No dia 13 de dezembro de 1969, Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica que terminava com um pequeno tópico, a que chamou Uma Pergunta. São apenas duas frases: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?" Relendo as crônicas de Clarice, outro dia, esbarrei com essa pergunta. E tive, por instantes, a sensação de que era dirigida a mim. Sei que isso é um exagero, mas a verdade é que senti o que senti, então o que posso fazer? E resolvi, 30 anos depois, tentar responder à maldita pergunta que ela me deixou.

Volto à pergunta: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, quando estamos vivendo - quando nos entregamos furiosos à ação, ou quando nos poupamos dela? Mas o mais importante está, talvez, na segunda parte da pergunta. "Que é que estou exatamente querendo saber?" Tenho a impressão de que, nessa segunda pergunta, sem que a escritora soubesse disso, já estava a resposta à primeira. Quantas vezes nos afogamos em perguntas inúteis, que só nos destroem em fogo brando?

Há dois dias, vivi um pequeno episódio que, só agora percebo, evoca a pergunta deixada por Clarice. Um simpático jornalista da TV me procurou para me convidar para a gravação de um programa, em que eu deveria debater um certo tema literário, com uma eminente doutora da universidade. Era um convite honroso e tratei de desmarcar compromissos de agenda para atendê-lo. Mas, assim que disse sim, uma pressão sem nome passou a me oprimir. O jornalista era gentil, a professora eminente, o convite era generoso - mas e eu? E cheguei à pergunta de Clarice: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, que cabiam em meu pequeno caso: era ir, ou não ir?

Ainda me debatia na dúvida quando meu amigo Wilson Bueno me telefonou e, inocente, recordou uma pequena história relatada por Guimarães Rosa. É mais ou menos assim. Caminhando pela Praça XV, um homem é avisado por alguém de que deve retornar urgente a Niterói, porque sua casa está incendiando e sua mulher corre risco de vida. Sem pensar, o infeliz se joga na Baía de Guanabara e começa a nadar. Está no meio do caminho quando se dá conta: vive num apartamento, não mora em Niterói e não é casado. Tomado por outro, sem pensar, ele aceitou o papel que o gentil desconhecido lhe dera e, ato contínuo, o interpretou.

Sem saber disso, meu bom Bueno me fez ver que eu não podia aceitar o convite do jornalista de TV. Foi muita gentileza dele, e lhe sou muito grato por isso, mas houve ali um erro de pessoa. Não, não sou eu a pessoa adequada para cumprir o papel de debatedor com a respeitável professora. Estamos, ela e eu, em mundos diferentes, usamos línguas diferentes e, mesmo achando que falaríamos da mesma coisa, estaríamos falando de coisas diferentes. Seria apenas uma mentira gentil. Nesse meu caso particular, aceitar o convite seria fazer de mim algo que não sou; e não aceitar, como preferi fazer, foi uma maneira de me preservar, de saber contemplar o mundo e esperar o momento oportuno. Pois nem tudo o que é bom, e o convite era muito bom, é oportuno.

Mas, outras vezes, tudo de que precisamos é fazer. Lembro-me aqui de um sonho impressionante que tive anos atrás. Eu, desesperado, me perguntava: "Por que nada acontece?" E uma voz espantosa, dessas que ecoam nos filmes bíblicos de Hollywood, me respondeu: "Nada acontece porque não acontecem as coisas que acontecem para que as coisas aconteçam." Sei que a frase foi essa porque, assustado, acordei no meio da noite e a anotei na margem de uma revista. É uma frase tortuosa, e me espanta que, dormindo, eu tenha podido concebê-la. O inconsciente é mesmo um bicho autônomo, que age sobre nós, suas pobres vítimas.

Trinta anos depois, Clarice, o que eu queria te dizer é: a primeira pergunta é falsa, e a resposta está na segunda. "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" você perguntou. A resposta é: "Que é que estou exatamente querendo saber?" Porque, melhor que perguntar, é viver, ainda que seja à beira de um lago contemplando em silêncio a água imóvel.

      

Frase do dia

        

"A gente nasce sem pedir e morre sem querer.
Aproveite o intervalo!"


Autor desconhecido