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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Um TAPA na resenha

          

Amigos a gente não critica em público. Na amizade, o que ocorre são toques e opiniões carinhosamente colocadas ao pé do ouvido. Por isso, é sempre um alívio quando pessoas de quem a gente gosta acertam naquilo que fazem.

Foi dentro desse contexto que escrevi o texto a seguir. Uma bela experiência protagonizada por queridos amigos:



Cloaca (Maria Goos) – Resenha

CLOACA: n substantivo feminino

1. fossa, canal ou cano destinado a receber dejeções
2 . coletor de esgoto
3 . vaso sanitário; latrina
4. escoadouro de águas; vala, sarjeta
5. depósito de imundícies; monturo
6 . tudo o que é imundo, que tem mau cheiro
7 . nos anfíbios, répteis, aves e muitos peixes, câmara comum onde os sistemas digestivo, excretor e reprodutor descarregam seus produtos.

(Dicionário Houaiss)


“Vocês não vão me dizer que existe um significado real para a expressão ‘cloaca’... Existe?”

A indagação do político Jan (André Garolli) sobre a expressão usada como saudação pelos quatro amigos de juventude, que frequentaram juntos a faculdade, além de ressaltar toda a sua mediocridade pessoal e profissional dá o tom do argumento dessa peça de autora holandesa sobre o reencontro e balanço de vida entre eles.

De fato, essa indagação, que ressurge duas ou três vezes durante o decorrer do texto, dá pistas profundas daquilo que corre nos subterrâneos daquele encontro que não consegue acobertar as suas faces de desencontro. Além de Jan, Tom, advogado viciado em cocaína (Dalton Vigh), e Marten (Brian Penido Ross), diretor de teatro às vésperas de uma estreia, se reencontram na casa de Pieter (Tony Giusti), um funcionário público gay que se envolve nas relações corporativas que lhe facilitavam o acesso ao arquivo de objetos da prefeitura e acaba acusado de apropriação indébita de obras de arte.

É essa acusação, que coloca em xeque a vida atual e o destino de Pieter, que acaba por reunir novamente os amigos. Jan vive uma crise no casamento exatamente quando, por conchavos políticos, está prestes a se tornar ministro. Para manter as aparências durante o processo, pede refúgio na casa de Pieter. E o fato de estar sendo recebido na casa de um amigo homossexual puxa a primeira ponta de um novelo onde se emaranham preconceitos, interesses, desajustes e frustrações e onde todas as facetas de cada um dos personagens se expõem como metal às intempéries e ao tempo, fazendo com que a amizade não resista aos desgastes e, assim como a ferrugem destrói o mais sólido dos metais, as relações acabam por se dissolver.

O que assistimos durante quase duas horas, acompanhados por uma iluminação exata e emoldurados pelo belíssimo cenário de Lola Tolentino, são diálogos aparentemente superficiais, mas que possuem a profundidade natural dos abismos pessoais de cada um de nós. Os fragmentos de vida expostos sem pudor mostram quatro homens que não chegaram a se completar. São esboços daquilo que poderiam ser ou ter se tornado e, nesse contexto, a crise masculina da meia-idade, os projetos desfeitos, os vícios, as projeções dos egos e os conflitos interiores desnudam-se de forma muitas vezes egoísta e alienada.

Pieter carrega a culpa e o sentimento de alvo social resultantes de sua opção sexual. Jan é..., bem, Jan é um político. Amoral e sem escrúpulos, é aquele que, mesmo como hóspede, reforça e amplifica os temores e sentimentos negativos de Pieter sobre ele mesmo. Marten, mais impermeável às críticas ácidas dos amigos sobre os seus espetáculos, tenta reforçar as suas estruturas e manter-se de pé através de uma pretensa qualidade de potência sexual que começa a apresentar falhas. Já Tom, o advogado recém-saído de uma internação e da reabilitação, é o grito de revolta de toda uma vida sintetizado no vício da cocaína e reforçado pelo porte físico e pela brilhante atuação de Dalton Vigh.

Nessa ciranda adulta dançada na sala de Pieter fica claro que, se há algo que resta daquilo que um dia foi a sólida e intensa amizade entre aqueles ex-jovens, é a sua senha pessoal. A saudação Cloaca!, mesmo sem que os personagens se apercebam disso, é o chamado e o grito de guerra que exala e anuncia, a cada cena, os perfis dos esgotos interiores de cada um dos envolvidos.

Sob a direção sempre certeira de Eduardo Tolentino, o Grupo Tapa acerta mais uma vez. A cena final que explicita o destino de Pieter e a responsabilidade de cada um dos amigos nesse desfecho arremata um espetáculo onde o riso se dá sempre através de maxilares cerrados. Não há espectador, na faixa dos 40 anos, que não saia com um gosto amargo na boca. Um gosto de passado e sonhos frustrados que consideramos pessoais e intransferíveis mas que, em cena, acabam colocados como fato comum à categoria humana.

Na saída do teatro, os acordes e a letra de let it be funcionam quase como um conselho pessoal a cada um atingido pelo vórtice de sensações onde amizade, interesse e egoísmo são equilibristas em corda bamba.

Deixe estar.

     

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Frases do dia

          

"Sapo não pula por boniteza, mas por precisão."

"Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa."



Guimarães Rosa

        

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Recordar é Viver

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domingo, 25 de outubro de 2009

Resenhando Williams

           

Assisti ao último espetáculo da temporada paulistana dessa que é uma das peças mais montadas de Tennessee Williams e, segundo a análise histórica, a mais auto-biográfica delas. Trata-se de “O Zoológico de Vidro”.

Parto desse fato pois o que poderia ser apenas uma contingência de tempo e espaço acabou por emoldurar uma história pungente de uma família à beira do destroçar. Consequentemente, se existe um adjetivo que poderia se aplicar para definir essa peça de Williams com uma só palavra seria “último”. O último sopro que apaga as velas e todas as esperanças na cena final. As últimas esperanças e sonhos de algo palpável do ponto de vista da mãe que se esvaem pelos seus dedos maternais. Último suspiro de uma família já há muito atingida pelos dissabores do destino.

A família em questão é o pequeno clã dos Wingfield, formado pela mãe, Amanda, um filho, Tom e uma filha, Laura. Esse triângulo de sensações e emoções poderia passar como banal se não resumisse de forma magistral os efeitos e vicissitudes de todo um tempo e época e, porque não, da maioria das relações familiares e cotidianas de cada um de nós.

Todo o desenrolar da peça se dá à sombra opressiva do retrato do pai na parede, que fugiu de casa e abandonou a família à própria sorte. É esse o ponto de partida para todos os efeitos e consequências desse ato sobre os demais componentes desse núcleo de pessoas que partilham de uma existência titubeante.

Narrada pelo filho Tom (Kiko Mascarenhas), a peça se desenrola num clima denso e obscuro. A iluminação é, na maior parte do tempo, tênue, e apesar de alguns diálogos terem uma vertente cômica, principalmente aqueles relacionados ao papel da matriarca que herdou toda a responsabilidade da família, os risos são nervosos. Nada é leve ou escapa do escrutínio cruel de uma vida que não demonstra fôlego suficiente para perdurar.

Tom pretende seguir os caminhos do pai e abandonar a família a qualquer momento. A mãe, exemplo clássico da nostalgia de um passado de glórias perfeitamente sintetizada por uma Scarlet O’Hara citada no texto, incorpora toda a decadência e derrota que até hoje, anos e anos após a guerra civil, ainda assola os americanos do sul. A cena em que ela busca o vestido antigo que lhe servia quando era cortejada por grandes fazendeiros é comovente. A entrada dela vestida de gala com esse mesmo vestido para o encontro do pretenso pretendente à mão de Laura cheira a naftalina e piedade. Nada mais que restos rotos de um passado de glória.

E por falar em Laura, chegamos aqui ao nervo mais exposto de toda a história. Interpretada por Karen Coelho de forma extremamente sensível, Laura é a filha mais atingida pela história emocionalmente distorcida da família. Para coroar seu papel de alvo primordial de todos os efeitos nefastos do dia-a-dia desse tabuleiro familiar, ela possui um defeito físico em uma das pernas que a impede de andar normalmente. De “defeito aparentemente imperceptível” para “aleijada solteirona” é uma questão de tempo e circunstância. Não existem filtros nessa onda de sentimentos, culpa e auto-piedade que assola a personagem. Tudo isso acaba sendo externado pela sua extrema timidez.

Em uma metáfora magnífica em sentido e significado, toda a delicadeza e fragilidade de Laura se projetam e ganham corpo no seu único hobby, que ocupa seu tempo após a desistência da escola, dos cursos tentados posteriormente e do viver, enfim: uma coleção de objetos e pequenos animais de vidro, a que a mãe denomina de “zoológico de vidro”.

Essa coleção frágil e bela, que resplandece aos poucos raios de luz que emanam da cena, permanece o tempo todo à vista do público. A cada conflito espera-se que alguém esbarre e destrua toda a frágil estrutura de madeira que mantém os objetos expostos. E essa sensação de insegurança e de que tudo pode desmoronar a qualquer momento acompanha os espectadores todo o tempo do espetáculo, deixando no ar um sentimento incômodo que é argumento e objetivo do texto.

Anunciado já no início da peça como um “símbolo” pela narração de Tom, surge, na segunda parte do espetáculo, a figura do amigo Jim O’Connor (Erom Cordeiro), seu colega de trabalho e ícone de paixão não correspondida de Laura nos tempos do colégio. Essa coincidência entre o personagem de um encontro que deveria ser entre um desconhecido aspirante a pretendente, e a pessoa que já figura há tempos nos álbuns mais secretos da menina, faz com que a mágica se faça e que Laura viva aquele que poderia ser o momento que daria um fim a uma existência sem sentido.

Apesar de infrutífero pelo fato de ele já estar comprometido, o diálogo entre os dois mostra empatia e uma fresta de luz para a auto-estima debilitada de Laura. A simbologia representada pela miniatura de um unicórnio de vidro que é quebrada na dança entre os dois fazendo com que o pequeno animal perca o chifre deixando-o semelhante aos outros cavalos e, portanto, afastando-o da situação de “aberração” é poética e emocionante.

Entretanto, essa fresta de luz logo se esvai. Na cena final, após a saída do amigo Jim e da partida efetiva de Tom, narrada por ele mesmo que acaba por abandonar a família para viver uma vida de aventura, a atitude da pequena e frágil Laura é definitiva e comovente. Ela apaga uma a uma as velas do candelabro que ainda lançam alguma luz sobre a cena. É o fim. A última possibilidade daquilo que poderia se chamar de família se esvai na escuridão. E é nessa escuridão que percebemos que todos nós estamos muito mais próximos da circunstância de fragilidade exposta pelas pequenas peças daquele zoológico de vidro do que supúnhamos.

No final, um ato de generosidade e um discurso emocionante de Cássia Kiss, que interpreta a mãe, Amanda, fecharam com chave de ouro essa rara oportunidade de assistir a uma montagem tão apurada de Tennessee Williams. Nos agradecimentos finais, fugindo do esquema de praxe, ela chama a pequena-grande Karen Coelho para um abraço apertado e um grande beijo de agradecimento. Ela ainda agradece, também, a todo o público paulista por entender, aceitar e reconhecer o que é o verdadeiro teatro, que é sua paixão.

Foi um momento de grande emoção que me fez descer as escadas rolantes da saída do teatro com um nó da garganta e a voz embargada. Tudo isso abençoado pelas imensas imagens de Raul Cortez, que empresta seu nome àquela sala de espetáculos.

Saravá!

        

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Correr na Praia

    




Corro no parque.

Sou um dos privilegiados que, mesmo numa megalópole, possui o privilégio do acesso fácil a uma área verde. No caso, o Ibirapuera, local lindo com nome sonoro e tradução absolutamente descritiva e desprovida de qualquer glamour na nossa língua-mãe tupi: pau podre.

De fato, basta uma chuvinha para que o parque resgate sua característica original e natural de brejo. É quando se percebe a impotência do homem em relação às mudanças das quais se considera capaz sobre a natureza. Mas, entretanto, não é disso que se trata esse texto. Fica para a próxima. Voltemos à corrida.

Correndo, pois, pela pista de cooper do parque, lembrei-me de que, algumas semanas atrás, estive no Rio de Janeiro a trabalho. E, como sempre que possível não descuido da minha corrida diária, assim o fiz na orla de Ipanema e Leblon tão familiar e conhecida desde meus tempos de infância.

Foi a partir dessa reminiscência de tão recente memória que me veio à mente uma discussão sobre um tema banal que ocorreu por lá e que se resumia à questão sobre o que é melhor, correr na praia ou no parque?

Obviamente que a primeira resposta, inclusive daqueles que moram em São Paulo e possuem um parque na porta de casa como era o caso do meu interlocutor, é líquida e certa: Praia. Pois bem; Ocorre que entre o escorrer de uma gota de suor e outra, dei-me conta que o banal escondia um pressuposto bem mais interessante que possui uma grande influência no imaginário humano e, por consequência, nas nossas escolhas e sonhos cotidianos.

Para quem não conhece o meu aeróbico espaço, imagine-se o ambiente comum a tantos outros parques. A pista onde eu corro é guardada por gentis sombras de árvores frondosas que deixam a temperatura amena e agradável. Os carros que circulam no entorno do ex-brejo mantêm-se a uma distância tal que faz com que seu ruído seja apenas uma lembrança sutil. E, para completar, sabiás, bem-te-vis e outros pássaros dão o ar de uma graça despudorada característica daqueles animais que já se acostumaram com a presença humana e não estão nem aí para ela. São passarinhos cosmopolitas, que cantam e tocam a vida sem se incomodar com o que outras criaturas estão fazendo ao lado.

Transportemo-nos agora, pois, para minha corrida na sem dúvida visualmente maravilhosa Ipanema, com Dois Irmãos ao fundo. Trata-se de um cartão postal lindo de se ver, e péssimo para se correr. O sol é inclemente, o ruído dos carros e ônibus que passam a apenas metros (às vezes centímetros) da ciclovia é ensurdecedor e trazem como brinde muita, muita fumaça. E a praia, idílica imagem, lá longe, parece um filme mudo de ondas silenciosas, uma vez que todo o ruído que poderia ser relaxante do quebrar das águas não é páreo para o motor a combustão.

Fato claro é que estamos tratando aqui de grandes cidades como São Paulo e Rio, e não qualquer um dos muitos lugares idílicos que ainda restam por essas paragens tropicais. Entretanto, paralelos colocados, como explicar o fascínio pelo correr na praia? Foi nesse ponto da indagação que a resposta veio nítida à minha mente: o fascínio pertence não ao ato, mas ao simbolismo. Quando as pessoas falam ou até mesmo praticam o correr na praia (e são muitas), transportam-se para uma grande ilusão coletiva, um cenário cognitivo que está colado lá nas mais profundas paredes do ser e que remete a uma praia deserta, cheia de coqueiros, com brisa e sons naturais. Trata-se de uma sensação ancestral que se transforma em experiência muitas vezes nunca tida, e que é prima-irmã do cavalgar na praia, sem sela ou laços, na mesma superfície de areias finas embrulhada de vento e liberdade, entre tantas outras.

Nisso tudo, o mais interessante é como nos deixamos enganar pacífica e tranquilamente por esse mecanismo que nos remete ao símbolo, à sensação, e não ao fato. Ao “correr na praia”, mergulhamos em um universo muito mais amplo e profundo que ignora as grandes avenidas e os sinais aniquiladores do progresso representado pela urbanidade. Temos essa facilidade. Colecionamos arquétipos que nos fazem aceitar e acreditar que vivemos determinadas experiências mesmo que a realidade seja muito distante daquilo que imaginamos, apenas aproveitando-nos de um elemento lúdico que faça parte de uma determinada fantasia comum.

Nessa mesma linha encontram-se os lugares da moda e o viajar no feriadão, por exemplo. O que explica o ato de transportar-se com armas e bagagens, família, sogra, cunhados e periquitos para um final de semana prolongado de filas e privações nos grandes balneários? E aquele lugar que não é tão bom assim, mas que é fundamental para seu “curriculum social” que você tenha estado lá? A resposta está no intangível. Na ilusão coletiva que reside muitas vezes no universo da irracionalidade. E na rede fina das aparências sobra apenas o “Estive em tal lugar no feriadão e foi ótimo! Você perdeu!” ou “Você ainda não esteve nesse lugar? Precisa ir. É imperdível!!”

Pois sim, a existência humana é, definitivamente, surpreendente. Como ocorre na circunstância de uma veia obstruída no sistema sanguíneo, o viver encontra outros caminhos que fazem correr sua seiva para que a essência da alma permaneça firme e angarie suas recompensas. Trata-se de mágica extra-humana. Ilusionismo que faz com que a vida se perpetue com o conforto mínimo de experiências que possuem sua parcela de êxtase encravada num parecer - ao mesmo tempo lúdico e irreal - que extrapola a experiência em si.

Ah, o ser humano... Quanto pensar numa simples corrida por um brejo disfarçado!
                  

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Frase do dia

             

"A vida é matemática elementar realizada com números complexos."


             

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Resposta a Martha Medeiros - Os Ausentes

         

Prezada Martha,

Sou um admirador seu. Aprecio seus textos como quem aprecia um bom vinho, que alimenta, aquece e embriaga levemente.

Ainda, e já isentando esse texto de qualquer condenação, não creio em super-seres. Homens ou mulheres. Gente é assim. Falha. Os melhores maratonistas tropeçam, os melhores malabaristas caem. É simples e humano.

Aproveitando essa deixa, olha, Martha, coitado do Joaquin... Julgado e crucificado entre as suas linhas por um equívoco de pensamento daqueles que acontecem de vez em quando. A gente acorda mal, aquele gosto ruim na boca e na alma, e é obrigado a cumprir uma tarefa extremamente ingrata naquelas condições físicas e mentais. Escrever ou pegar numa enxada, dar uma entrevista ou ir para uma reunião no escritório, não importa. Fazer as coisas contra a vontade, ao contrário do que você afirma, dói sim. E quanta dor e cansaço há nesse texto, não?

Sou um defensor do viver de dentro para fora. O resto são condições e regras de comportamento geralmente arbitrárias com as quais a gente, sim, é obrigado a conviver mas absolutamente não precisa partilhar, absorver ou mimetizar. Expressar essa verdade é legítimo. Disfarçá-la com sorrisos frios é lobotomia social.

Martha, querida, que fique claro mais uma vez que estou aqui lhe defendendo e não acusando. Gostaria mesmo que você tivesse ficada deitadinha, encolhidinha, posição fetal, nesse dia aparentemente tão azedo. Viu só no que deu você se esforçar para sorrir para a platéia? Não deu certo. É chato. Compromete a gente. Vale a descompostura?

Existem diversas brechas no seu texto ótimas para se encaixar algumas bananas de dinamite, mas sua inteligência não permite certas incoerências e, assim que você as comete, a escritora sagaz trata de sabotá-las mesmo que instintivamente.

Explico: você mesma diz "quando uma pessoa se dispõe a dar uma entrevista..." e pronto. Dinamite aí. Quem disse que o coitado do Joaquin se dispôs? E a santa maria do rock? Será que ambos não preferiam ficar tranquilamente na mansão deles, na mesma posição fetal que é democraticamente comum a todos?

Realmente não há super-seres. Existem é super-contratos que nos obrigam a determinadas coisas, assim como maridos insensatos e esposas insensíveis que chantageiam por caminhos tortos. Nesses casos, Martha, grosseria é obrigar alguém e exigir que esse alguém não expresse o descontentamento com um ou outro muxoxo. A cara feia aqui é legitimidade. É defender implacavelmente a humanidade. Decerto o Quinzinho preferiu ouvir o que ouviu do Letterman a ser mais uma entrevista sonolenta, morna e sem sentido. Palmas pra ele.

Mas, Marthinha, é bom deixar patente nessa altura do papo que sua obra lhe redime. É crueldade se ater a esse texto quando o conjunto é tão generoso e brilhante. Melhor esquecer. Ou melhor, não...

...Vale ainda um confete: você é boa até quando é ruim. Senão, analisemos sua última frase agora com a mente mais clara. Há uma incongruência ali que entrega a inconsistência do raciocínio mas nos permite um reparo. O "se não quiser participar, tudo bem..." é perfeito, mas não combina com o ser obrigado pelo marido, mulher ou quem quer que seja a fazer o que não se quer e sorrir socialmente para não ser grosseiro. Uma coisa elimina a outra e o tropeço vem.

Vamos assumir o conflito: devemos, sim, brigar para não sermos obrigados a determinadas coisas e, quando o somos, não há a obrigação de sorrisos-de-mona-lisa. Aqui, nessa sua última linha e ao contrário das regras matemáticas, a ordem dos fatores altera o produto. Permita-me:

"Melhor (para a humanidade) uma ausência desaforada do que uma presença meramente honesta"

Perdoe-me a ousadia.

Abraços.




Os Ausentes - Martha Medeiros

Eu não assisti ao programa, mas soube da história. O jornalista David Letterman recebeu Joaquin Phoenix para uma entrevista. O ator fez juz à fama de bad boy: não parou de mascar chiclete e só respondia com monossílabos e grunhidos, não facilitando o andamento da conversa. Letterman tentou, tentou e, como não conseguiu arrancar nada do sujeito, encerrou a entrevista com uma tirada que me pareceu perfeita: “Joaquin, uma pena que você pôde vir esta noite.”

Quando uma pessoa se dispõe a dar uma entrevista, tem que entrar no jogo: responder com generosidade ao que foi perguntado e valer-se de uma educação básica, caso tenha. É bom lembrar que a maioria das entrevistas não é feita apenas para dar ibope ao programa, e sim para ajudar na divulgação de algum projeto do convidado. Ambos saem ganhando. Só quem não ganha é a plateia quando o convidado finge que está lá, mas não está. Madonna é até hoje o trauma da carreira de Marília Gabriela, pelos mesmos motivos.

Claro que há quem defenda a atitude de Phoenix com o argumento da “autenticidade”, mas existe uma sutil diferença entre ser autêntico e ser grosso. É muita inocência achar que podemos prescindir de uma certa performance social. Espero não estar ferindo a sensibilidade dos “autênticos”, mas de um teatrinho ninguém escapa, a não ser que queiramos voltar a viver nas cavernas.

Não sou de me irritar facilmente, mas acho um desrespeito quando uma pessoa faz questão de demonstrar que não compactua com a ocasião. São os casos daqueles que se emburram em torno de uma mesa de jantar e não fazem a menor questão de serem agradáveis. Pode ser num restaurante ou mesmo na casa de alguém: estão todos confraternizando, menos a “vítima”, que parece ter sido carregada para lá à força. Às vezes, foi mesmo. Sabemos o quanto uma mulher pode ser insistente ao tentar convencer o marido a participar de um aniversário de criança, assim como maridos também usam seu poder de persuasão para arrastar a esposa para um evento burocrático. Não importa a situação: saiu de casa, esforce-se. Não precisa virar o mestre de cerimônias da noite, mas ao menos agracie seus semelhantes com dois ou três sorrisos. Não dói.

Dentro da igreja, ajoelhe-se. No estádio de futebol, grite pelo seu time. Numa festa, comemore. Durante um beijo, apaixone-se. De frente para o mar, dispa-se. Reencontrou um amigo, escute-o.

Ou faça de outro jeito, se preferir: dentro da igreja, escute-O. Durante um beijo, dispa-se. No estádio de futebol, apaixone-se. De frente pro mar, ajoelhe-se. Numa festa, grite pelo seu time. Reencontrou um amigo, comemore.

Esteja, entregue-se.

Se não quiser participar, tudo bem, então fique na sua: na sua casa, no seu canto, na sua respeitável solidão. Melhor uma ausência honesta do que uma presença desaforada.
   
           

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Resposta tardia a Clarice Lispector


     
  Autoria José Castello       No dia 13 de dezembro de 1969, Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica que terminava com um pequeno tópico, a que chamou Uma Pergunta. São apenas duas frases: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?" Relendo as crônicas de Clarice, outro dia, esbarrei com essa pergunta. E tive, por instantes, a sensação de que era dirigida a mim. Sei que isso é um exagero, mas a verdade é que senti o que senti, então o que posso fazer? E resolvi, 30 anos depois, tentar responder à maldita pergunta que ela me deixou.

Volto à pergunta: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, quando estamos vivendo - quando nos entregamos furiosos à ação, ou quando nos poupamos dela? Mas o mais importante está, talvez, na segunda parte da pergunta. "Que é que estou exatamente querendo saber?" Tenho a impressão de que, nessa segunda pergunta, sem que a escritora soubesse disso, já estava a resposta à primeira. Quantas vezes nos afogamos em perguntas inúteis, que só nos destroem em fogo brando?

Há dois dias, vivi um pequeno episódio que, só agora percebo, evoca a pergunta deixada por Clarice. Um simpático jornalista da TV me procurou para me convidar para a gravação de um programa, em que eu deveria debater um certo tema literário, com uma eminente doutora da universidade. Era um convite honroso e tratei de desmarcar compromissos de agenda para atendê-lo. Mas, assim que disse sim, uma pressão sem nome passou a me oprimir. O jornalista era gentil, a professora eminente, o convite era generoso - mas e eu? E cheguei à pergunta de Clarice: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, que cabiam em meu pequeno caso: era ir, ou não ir?

Ainda me debatia na dúvida quando meu amigo Wilson Bueno me telefonou e, inocente, recordou uma pequena história relatada por Guimarães Rosa. É mais ou menos assim. Caminhando pela Praça XV, um homem é avisado por alguém de que deve retornar urgente a Niterói, porque sua casa está incendiando e sua mulher corre risco de vida. Sem pensar, o infeliz se joga na Baía de Guanabara e começa a nadar. Está no meio do caminho quando se dá conta: vive num apartamento, não mora em Niterói e não é casado. Tomado por outro, sem pensar, ele aceitou o papel que o gentil desconhecido lhe dera e, ato contínuo, o interpretou.

Sem saber disso, meu bom Bueno me fez ver que eu não podia aceitar o convite do jornalista de TV. Foi muita gentileza dele, e lhe sou muito grato por isso, mas houve ali um erro de pessoa. Não, não sou eu a pessoa adequada para cumprir o papel de debatedor com a respeitável professora. Estamos, ela e eu, em mundos diferentes, usamos línguas diferentes e, mesmo achando que falaríamos da mesma coisa, estaríamos falando de coisas diferentes. Seria apenas uma mentira gentil. Nesse meu caso particular, aceitar o convite seria fazer de mim algo que não sou; e não aceitar, como preferi fazer, foi uma maneira de me preservar, de saber contemplar o mundo e esperar o momento oportuno. Pois nem tudo o que é bom, e o convite era muito bom, é oportuno.

Mas, outras vezes, tudo de que precisamos é fazer. Lembro-me aqui de um sonho impressionante que tive anos atrás. Eu, desesperado, me perguntava: "Por que nada acontece?" E uma voz espantosa, dessas que ecoam nos filmes bíblicos de Hollywood, me respondeu: "Nada acontece porque não acontecem as coisas que acontecem para que as coisas aconteçam." Sei que a frase foi essa porque, assustado, acordei no meio da noite e a anotei na margem de uma revista. É uma frase tortuosa, e me espanta que, dormindo, eu tenha podido concebê-la. O inconsciente é mesmo um bicho autônomo, que age sobre nós, suas pobres vítimas.

Trinta anos depois, Clarice, o que eu queria te dizer é: a primeira pergunta é falsa, e a resposta está na segunda. "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" você perguntou. A resposta é: "Que é que estou exatamente querendo saber?" Porque, melhor que perguntar, é viver, ainda que seja à beira de um lago contemplando em silêncio a água imóvel.

      

Frase do dia

        

"A gente nasce sem pedir e morre sem querer.
Aproveite o intervalo!"


Autor desconhecido

         

domingo, 27 de setembro de 2009

Dia sem chato

        

Parabéns ao Guilherme pela sábia, inteligente e divertida colocação.

Vale também para todos os outros tipos de chato. Saca aqueles dos "toques frutados" e "aromas amadeirados"?

Pois é!...


Guilherme Fiuza
Jornalista, é autor de Meu nome não é Johnny, que deu origem ao filme. Escreveu também os livros 3.000 Dias no Bunker, reportagem sobre a equipe que combateu a inflação no Brasil, e Amazônia, 20º Andar, a aventura real de uma mulher urbana na floresta tropical. Em política, foi editor de O Globo e assinou em NoMínimo um dos dez blogs mais lidos nessa área.


Com tantas datas dedicadas à conscientização dos cidadãos, só está faltando a criação de uma: o Dia Mundial Sem Chato.

Seria um feriado nacional para as cassandras de plantão. Nenhuma delas mandaria você encurtar seu banho para salvar o estoque de água doce do planeta.

No Dia Mundial Sem Chato, você ficaria a salvo da mediocridade sustentável – aquela doutrina que reduz os problemas do mundo a meia-dúzia de slogans.

Você não correria nenhum risco de ouvir que a crise financeira internacional será resolvida com um novo paradigma ecológico.

A ONU e toda a eco-burocracia ficariam proibidas, nesse dia, de divulgar papers com projeções chutadas sobre o holocausto climático em 2050.

O Greenpeace não poderia engarrafar a Avenida Paulista nem a Ponte Rio-Niterói para protestar contra os engarrafamentos.

No Dia Mundial Sem Chato, você não poderia se sentir um canalha por possuir um automóvel, nem um criminoso por não trocá-lo pelo maravilhoso transporte de massa que não existe.

Você teria, ainda, o direito de exigir dos hipócritas do apocalipse o seu patinete a jato com ar-condicionado.

Ficaria vedada qualquer equação burra que culpasse os freqüentadores de shopping centers pela fome na África.

Nessa data cívica, você seria poupado dos axiomas que criminalizam o consumo de hambúrguer, devido aos gases estufa expelidos pelas vacas durante a digestão.

Ninguém tentaria te aliciar com discursos carolas para salvar o planeta. Ao contrário: o planeta seria salvo, por um dia, do totalitarismo carola.

No Dia Mundial Sem Chato, cada vez que a palavra “sustentabilidade” fosse pronunciada, o autor da infração seria multado em dez salários-mínimos – destinados ao programa Bolsa Clichê, de salvação do idioma.

A finalidade do Bolsa Clichê seria, basicamente, erradicar os vocábulos vazios que tentam substituir a velha expressão “bom senso” por fetiches ideológicos.

Dê você também a sua contribuição para a criação do Dia Mundial Sem Chato. Vamos salvar o planeta da chantagem emocional barata.

 

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

De Riobaldo sobre Diadorim



"...Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor."


João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas



(Diadorim por Aldemir Martins)

Intangível


    
"As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!"

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
  



terça-feira, 22 de setembro de 2009

Momentos



...É que os momentos felizes não estão escondidos, nem no passado, nem no futuro...




terça-feira, 15 de setembro de 2009

Resenhando Hamlet

                  

"What a piece of work is man. How noble in reason. How infinite in faculty. In form and moving how express and admirable. In action, how like an angel. In apprehension, how like a God. The beauty of the world. The paragon of animals. And yet, to me, what is this quintessence of dust. Man delights not me..."

- from Hamlet, by William Shakespeare

Foi-me pedido, em um trabalho acadêmico, para fazer uma resenha de um entre três títulos de filme pré-determinados.

Antes de mais nada, pensei muito ao me atrever a resenhar Hamlet, um dos meus personagens favoritos e com o qual travei contato ainda muito cedo, muito jovem. Li o livro em português, me atrevi no original em inglês, passei pela versão cinematográfica do Olivier e, agora, decidi assistir à versão dirigida por Franco Zeffirelli, com um surpreendente Mel Gibson no papel-título e uma bem escolhida Glenn Close como a Rainha Gertrudes.

Não é meu objetivo, aqui, uma comparação entre essas versões. Cada uma tem seu espírito, seu tempo e seu valor artístico. Zeffirelli persegue uma linguagem mais acessível que faz inteligível para a grande massa textos clássicos e complexos desde seu “Romeu e Julieta”. E apesar de haver uma grande carga de preconceito quanto a isso junto aos puristas, palmas pela direção que torna mais palatável e possível para grande parcela da população o contato com textos e personagens tão ricos.

A partir daí, e ciente do amplo universo de resenhas já existentes sobre a obra em questão que a contam e recontam, decidi por uma dissertação mais simbólica baseada nos meus sentimentos pessoais sobre a história.

Nesse sentido, a frase reproduzida no inicio da página - do original em inglês - traduz, a meu ver, todas as nuances e descompassos que envolvem a percepção humana nessa obra. Hamlet, nesse monólogo, tece considerações sobre o ser humano. Descreve-o como a mais perfeita forma animal, obra-prima de Deus em movimento, expressão e entendimento para, logo depois, ressaltar a sua falta de importância como quinta-essência do pó.

É essa montanha russa emocional e filosófica que faz de Hamlet um dos pilares da literatura mundial e um dos papéis mais complexos de ser interpretado. Da visão do fantasma de seu pai que lhe revela ter sido assassinado pelo próprio irmão à constatação dessa traição do tio com a mãe, o processo de vingança e loucura que acomete o príncipe da Dinamarca é, ao mesmo tempo, tenebroso e sublime. Reflexo claro da definição humana proferida por ele próprio na frase inicial dessa resenha e que faz sua existência insuportável frente à tamanha lucidez.

Na sua insana busca pela vingança ele se vê aprisionado dentro de um labirinto mental e emocional que nunca o leva à atitude suprema que consumaria o seu objetivo principal. O desejo de atender o desejo do espírito do pai é cercado pela moral, pelos pensamentos e pelo intelecto que armam, o tempo todo, ciladas que o levam à espiral de loucura e sanidade que, intercaladas, constroem um texto que avança caudaloso e feroz como as corredeiras de um rio.

Sua loucura, aliás, é ferramenta e destino. Atormentado pela visão e revelações do pai morto, ele se apossa da vertente da demência para poder traçar todos os seus planos de vingança com mais liberdade. Afinal, aos loucos tudo é perdoado e nada é crível. Assim, ele pode falar o que quiser e ouvir conversas e comentários que vão montando todas as peças de seu quebra-cabeças pessoal sem ser importunado. E assim, ainda, ele acaba por se envolver de tal forma em seu plano de justiça que as fronteiras da loucura começam a se tornar por demais tênues.

Em seu caminho, da aparição fantasmagórica do velho rei ao final trágico de toda a família real, nada mais tem consistência. Sacrifica o amor de Ofélia na dúvida sobre a sua lealdade. Num ambiente cada vez mais contaminado pela falta desse sentimento e pelas intrigas incessantes, como saber que é quem? Cláudio, o rei assassino, é a deslealdade personificada. A mãe, Rainha Gertrudes, que é cúmplice e casa-se com o cunhado apenas dois meses após a morte do marido, não é símbolo algum de virtude. A falsa lealdade bajuladora de Polônio e toda a realidade nefasta do dia-a-dia da corte constroem, enfim, o cenário ideal para o questionamento sobre a índole humana e a execução da vingança a qualquer custo.

Nesse caminho, não importa mais matar ou morrer. E é essa solidez de princípios num ambiente formado de hipocrisia e falsidade que faz do príncipe vingador um personagem irresistivelmente sedutor para as platéias. A busca pela justiça, inerente a todos os seres humanos, permeia cada cena e fala da história.

O fato é que, com esse objetivo em mente, não há como voltar atrás. Loucura ou ferrenho apego ao destino lhe dado pelo pai, a trajetória do príncipe Hamlet faz com que, tal como um bobo da corte ensandecido, ele desmonte uma a uma as aparências e artimanhas ao seu redor através de textos revestidos de metáforas que traduzem duras verdades.

A morte de Ofélia afogada no rio, louca de amor e decepção, traz à tona a falta de importância de qualquer outro objetivo de Hamlet que não seja a vingança do pai. O amor, simbolizado na ingênua Ofélia, é afogado junto com a personagem uma vez que não tem lugar no processo.

Acionado o moto-contínuo da vingança, nada mais resiste. Mortes se sucedem. Hamlet mata acidentalmente Polônio, o pai de Ofélia, iniciando o processo real de loucura da sua apaixonada. A partir daí, de modo que os conchavos do rei para matar Hamlet tomam forma, os corpos caem como sinal único daquilo que restará após a vingança.

Os falsos amigos Guildenstern e Rosencrantz, Laertes, o irmão de Ofélia, a rainha-mãe, o rei nefasto e o próprio Hamlet. Todos tombam deixando um rastro trágico de sangue.

Inevitável acompanhar Hamlet sem tomar seu partido, apoiando cada atitude exacerbada e insana na sua busca por justiça. O fiel amigo Horácio, único poupado na sua sanha vingativa, honra a sua lealdade ficando ao lado do príncipe até o final. Horácio simboliza, de fato, a única espinha dorsal consistente em valores humanos numa realidade que se desfaz.

E é de posse desse simbolismo que ele ampara o amigo em seus momentos finais, quando Hamlet profere suas últimas palavras traduzindo o epitáfio perfeito da lápide que sintetiza a tormentosa jornada do príncipe da Dinamarca:

“O resto é silêncio”.
              

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Frase do dia (e de sempre)

        


"Sei lá, mil coisas..."


Pai Ubú   



            







                         

O Caminho Suave

       

Sou da época do caminho suave. Para quem não sabe, a Caminho Suave era uma cartilha, instrumento pré-histórico onde muita gente boa aprendeu o be-a-bá.

Mas não me aterei à cartilha nesse momento. Ela entra apenas como um ótimo título para esse papo. Interessante mesmo é que, quem se lembra da Caminho Suave, com certeza se lembra ainda com muito mais ímpeto e carinho da Coleção Disquinho.

Assim como a Caminho Suave nos ensinava a soletrar e os aspectos técnicos da língua e do falar, a Coleção Disquinho nos ensinava fantasia e moral. Sim. Lições de moral embrulhadas em contos infantis numa época onde o planeta ainda não havia sido devastado pela praga espúria do “politicamente correto”.

Senão, vejamos: o lobo era mal. Ponto final. O saci era preto. E preto era preto sem traumas. Na boa. A Chapeuzinho Vermelho andava por lugares ermos. E sozinha. E, como gran finale, acabava por assistir, gratificada, o caçador dar um tiro no lobo travestido de vovozinha e enfiar um facão na barriga do bicho tirando a velhinha lá de dentro. Inteirinha. Tudo preto no branco. Sem patrulhas de gênero ou de cor.

Hoje, o embotamento é que vem travestido do politicamente correto. Nada pior, mais nocivo, do que a total ausência de convicções embrulhada numa convicção sob encomenda. Para frequentar o shopping.

Esse tema veio à minha mente quando, ainda ontem, assisti em um programa de notícias da TV paga (outra evolução para quem se lembra dos controles de vertical e horizontal), uma entrevista junto a crianças do primeiro grau onde elas falavam sobre a importância da água.

Uma pequena, linda e estranha criatura dizia, toda satisfeita, que passou a controlar o tempo de banho dos pais. Havia algo de pernicioso naquela criança, algo de zumbi, de nefasto, traduzido inclusive na clara subversão do respeito relativo ao pátrio poder. A razão para tal determinismo? Porque água era um bem precioso e estava “acabando”. E que, por isso, era responsabilidade de todos a sua preservação e economia. Ela, inclusive, também fecha as torneiras que pingam. Do contrário o desastre seria iminente. Tudo tão correto. Tudo apreendido na escola.

Que bom seria se alguém tivesse a coragem de apresentar claramente para essa nova geração os fatos como são! Mas o que assistimos pacificamente é um festival infinito de irracionalidades e cegueira. A tranqüilidade vem do “politicamente correto”. E, confesso, chego às raias da loucura ao ver a expressão “correção” tão inadequadamente aplicada.

De volta para o futuro: o planeta Terra levou bilhões de anos para construir um sistema hídrico perfeito. E trata-se de um sistema fechado. Não se “cria” água. Não se “acaba” com a água. A água é exatamente a mesma desde que o mundo é mundo. E o mundo é mundo, para nós pobres entidades carboníferas prepotentes, desde que pisamos por essas paragens pela primeira vez, mesmo ele sendo mundo já bem antes.

Não, a água não está acabando, minha pequena garota tomada de infanto-ecologica histeria. Temos é gente demais no planeta. Muita gente para a mesma quantidade de água. E gente mal-educada. Poluente. E não há banho curto que dê jeito. É triste, mas é lei, ensinava minha mãe.

Entretanto, não tocamos jamais nesse assunto. Nada mais politicamente incorreto do que falar claro. Aliás, deixemos bem claro: existe algo mais patético, mais ofensivo intelectualmente do que um crédito de carbono? Como acreditar nisso? Curupira, Caipora, são mais factíveis. Mas essa garota vai comprar um assim que for possível para dormir o sono dos justos. E plantar árvores. Sim, muitas árvores para compensar o rastro deixado pelo avião na última viagem à Disney.

Criança... tome seu banho de meia hora, mas use camisinha. Desenhe na sua folha de papel e plante árvores por prazer e não por culpa. Mas, entre um desenho e outro, um send e outro para a impressora, se instrua sobre métodos anticoncepcionais.

Não há natureza de menos. Há gente demais. E o planeta não suporta. E a natureza reage. E estará exuberante assim que nos retirarmos de cena. Por bem ou por mal. Afinal, o equilíbrio ecológico não é de fora para dentro. O ser humano é o fator desequilibrado da equação do equilíbrio. Simples assim. Matemática elementar.

Mas a patrulha da correção política vai além. Grassa por paragens várias. Começamos a criar no Brasil, por exemplo, um problema de racismo que nunca tivemos nesse cenário trigueiro. Estamos fazendo o tal povo mulato e inzoneiro engolir e aprender à força sobre cotas raciais. Caminho nada suave esse.

Assistimos ainda a propagandas na TV. Todas iguais. E publicitários que debatem sobre a falta de criatividade e pasteurização da mensagem. Óbvio. Quando todos querem ser a mesma coisa, não há como o resultado ser criativo ou diferente. E, na comunicação, é importantíssimo que todos sejam politicamente corretos. Ecologicamente equilibrados.

Ah, como seria interessante, criativo e muito mais eficaz para o bem estar mundial ver uma marca de cosméticos apregoar “use nossos produtos e nós distribuiremos 10 kits contraceptivos em seu nome para o equilíbrio do planeta”! Mas preferimos a falseta das árvores.

Aliás, no segmento imobiliário da cidade de São Paulo, todos os lançamentos possuem, embutidos, bosques maravilhosos e ricos de vida natural. Se seguirmos nessa trilha, teremos muito em breve uma metrópole de parques e matas! Puro embuste.

E tudo alinhavado com a linha insossa e cinza do politicamente correto. Afinal, se não é possível tocar-se na ferida real, se são pessoas que consomem, trabalham e compram mais, e se quanto mais, melhor, dane-se a água! Troco sua culpa por uma muda de eucalipto.

. . . . .


Para quem não viveu, os vinis da Coleção Disquinho eram coloridos. Como eram coloridas as suas histórias e suas lições. Totalmente incorretas para os atuais parâmetros. E como era gostoso ouvi-los! Além da já citada Chapeuzinho (com o tal lobo que fazia mingau de criancinhas), tinha a Dona Baratinha (aquela da fita no cabelo e dinheiro na caixinha, prontinha pra comprar um marido), a Branca de Neve (que dormia com sete anões), os Três Porquinhos, a Cinderela, quanta cor, enfim...

Que pena daquela garota do telejornal que tem que se contentar com um crédito de carbono!


       

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Frase do dia

     

... Uns trocam seis por meia dúzia.
Eu troquei seis por cinco delas. E mais!...

    

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Biologia e a Visão

              

Dos Mundos Paralelos - A Biologia e a Visão


Gosto da palavra “irmão”. Trata-se de uma daqueles pedaços da língua mátria que soam aquilo que são. É fechada. Concreta. Talvez por ter como sufixo uma parte essencial do corpo humano que, aqui, enxergo como mão fechada em outra, num aperto quente e sincero. Rijo de irmandade.

Na sua versão feminina, como cabe ao universo de Vênus, as coisas são tanto mais impalpáveis quanto mais fortes. Irmã soa como imã. União através de partículas invisíveis de magnetismo idem. Dizem que existe uma razão, mas o que vemos é simplesmente a atração, partículas com vontade própria se movendo pelo espaço para junto de um ponto comum de convergência e unicidade.

A humanidade gosta de explicar as coisas como se não fosse o supra-sumo do pó que habita um grão de poeira estelar. De fato, dá um conforto danado imaginar-se como autor de descobertas e teorias cujo significado e razões jamais alcançaremos. Daí o tal magnetismo que no seu sentido emocional atinge gradações românticas que geram uma Julieta e um Romeu.

Pois é na ânsia de explicar o imponderável que surge a tentativa de se enquadrar, catalogar e definir o papel do irmão. A priori nasce-se com alguns caso os pais sejam prolíficos em constituir grandes famílias. A biologia aqui define o que e como são seus irmãos e, num ímpeto louco de controlar o caos cromossômico, a raça humana tenta tirar desse acaso uma cumplicidade compulsória e natural. Tolice.

A cumplicidade reside no ambiente do inexplicável. Acontece, encontra-se, bate-se com ela como se tropeça numa pedra da calçada ou num barranco. E, de repente, a mágica se faz num parto etéreo que envolve forças poderosas e universais tais quais as coisas magnéticas sugeridas nos livros de física. Nasce um(a) irmão(ã). É o milagre da vida sem hospital, sangue, choro e tudo aquilo que especifica a nossa natureza irracionalmente animal a todo custo escondida.

Existimos, assim, sitiados entre universos paralelos. O da biologia e o da real visão. De um lado os rituais sociais que mantém a tribo de pé e impede o canibalismo latente. De outro, o esplendor de sentir o universo trabalhando num tecido que jamais conheceremos.

O bônus é que, uma vez reconhecido e aceito, esse tecido é boa malha que aquece, acolhe, e traz recompensas e sinais da verdadeira família que devemos constituir para o nosso próprio bem.

        

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Frase do dia

    

"Não,
Não pode alcançar os astros,
Quem leva a vida de rastros,
Quem é poeira do chão..."


Salve Dalva de Oliveira!

   

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Mentes Perigosas

    

"Não negocie com o mal.
Jamais concorde, seja por pena,
chantagem ou qualquer outro
motivo, em ajudar um psicopata a
ocultar o seu verdadeiro caráter"

O texto acima é parte do livro "Mentes Perigosas", de Ana Beatriz Barbosa Silva, e traduz o principal ensinamento que tirei dessa leitura recente.





Vale a leitura. Tanto para quem já teve a infelicidade de trombar com os vários psicopatas de plantão que nos rodeiam no trabalho, nas amizades, e até no seio familiar, quanto para aqueles que não tiveram esse azar mas podem e devem se proteger.

Um anjo, daqueles que também não descuidam dos seus plantões, me recomendou o livro.

Eu passo adiante!

           

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Ser Complicado

  
Ser complicado é deveras complicado. Mais ainda nos dias simplistas e rasos de hoje. Mas, na verdade, sempre foi assim.

Nos idos de 1981, no auge das inquietações dos meus 18 anos, a complicação convulsionada era regra e ensino. Escola de vida que começava a moldar o caráter de quem vos fala. E começava, também, a ensinar sobre o imponderável.

E foi na imponderabilidade que, num consultório de dentista, na última página da Revista Amiga, encontrava-se essa pérola existencialista de autoria do grande Arthur da Távola.

Arranquei a tal página, que carrego até hoje comigo. A internet possibilita a sua divulgação digital sem o papel-revista que, hoje, já se desfaz.

Que sirva para os "complicados" de hoje e de sempre:



ARTUR DA TÁVOLA

 
Artigo publicado em 01/1981

 
Um personagem interessante é o que vem sendo criado pelo ator Marco Nanini em As Três Marias, o Aluizio, aquele professor ao mesmo tempo apaixonado por asas voadoras e pela vida. O personagem tem a força de mostrar como são certas pessoas dotadas ou de uma telha a mais, ou de gotas de sensibilidade, cultura ou inteligência acima da média. Tais pessoas, embora interessantes, se tornam ora meio marginais, ora até meio chatas, porque a capacidade de ver além e adiante, de certa forma as afasta, e separa dos demais. Mais que isso, elas ameaçam. Até sem querer ameaçam. Os demais sempre se põem em guarda. Tais pessoas riquíssimas em sensibilidade são, então, chamadas pelos outros de “complicadas”.

A rigor elas são algo complicadas, porém não é a complicação o que as define: é a sensibilidade. Vendo o professor Aluizio enriquecido por essa capacidade lúdica, alegre e criativa de o ator Nanini vitaminar os personagens que representa, invadiu-me uma enorme ternura pelas pessoas chamadas de complicadas pelos demais e resolvi dizer-Ihes o que segue:

 Para quem o chama de complicado, meu amigo, e o ofende, como explicar que a complexidade é rica, significante, cheia de caminhos maravilhosos, vários dos quais bloqueados até por você mesmo, que os possui? As porteiras e os mata-burros de nossos caminhos interiores são construídos por nós mesmos.

 Não ligue, portanto, para quem cortou o melhor dos seus impulsos com a frase defensiva e humilhante: "Puxa, como você é complicado!" Quem o fez talvez esteja temendo caminhar com você pelas vias da sua criatividade interior, tão grande que o confundiria. É mesmo mais fácil escolher um só caminho e acreditar nele. Mas fácil e mais falso ... Talvez essa pessoa não esteja querendo (nem podendo) ver a força dos mundos paralelos, todos caleidoscópicos, que você tem para oferecer a quem topar a aventura de (o) (se) conhecer.

 É que as pessoas preferem a relação superficial, aquela feita do pleno conhecimento externo (e pela metade) das reações e das atitudes do outro. Isso não é relação, é controle. Quando elas dizem: "Conheço fulano como a palma da minha mão", querem é dizer que já têm o fulano na palma da mão delas e que a relação é tão superficial que podem até conhecer (ó pretensão) o parceiro.

 Quando alguém é conhecível por não ser "complicado", esse alguém fechou-se à criatividade interior; à procura de suas dimensões mais fundas, remotas regiões de seus elos biológicos, cósmicos, químicos, religiosos, celulares, atávicos, raciais, antropológicos e biográficos. O verdadeiro simples é um "complicado" que descobriu a síntese. Falando mais claro: a pessoa verdadeiramente simples é alguém que descobriu as sínteses da própria complexidade. Quando estava no caminho da simplicidade, e sofria, era chamada de "complicada".

 As pessoas preferem as relações superficiais, pois com elas não precisam se aventurar no mistério que é o outro, que somos todos e que é cada um de nós.

 É muito mais fácil transar com o conhecido do que com o desconhecido, daí essa ânsia de conhecer (saber, definir, sugar, aprisionar) o parceiro ou a parceira, como se isso fosse possível. E para evitar que a pessoa dispare por essa região maravilhosa, contraditória e criativa, a do próprio mistério, a outra vem e a congela com a ameaça: "Puxa, como você é complicado!" Aí, por medo de "ser complicado", você se mete a auto-simplificar-se, processo que ceifa com foice existencial os milagres de ternura humana, percepção, respeito, cuidado e carinho escondidos atrás e dentro de cada "complicação".

 
Complicação uma ova! Ali está (estava?) uma coisa chamada sensibilidade, capacidade de ver os vários caminhos. Não é complicação: é complexidade, riqueza.

 
Ser "complicado" é saber exatamente em que ponto e medida o outro não vai poder (jamais) perceber o que está em nós, e não se ofender com ele por isso, antes entendê-lo.

 
Ser "complicado" é guardar os tesouros de cada plano com o qual a gente se relaciona com os demais e com a vida, sabendo respeitar a intensidade, a freqüência e a faixa de onda da sintonia de cada um.

 
Ser "complicado" é ter a força para agüentar o máximo da incompreensão sem um gesto de reclamação ou azedume. E não cortar violentamente quem o fere. É não tentar explicar.

 
Ser "complicado" é saber demais e dizer de menos. É proteger as pessoas da lucidez esmagadora de uma percepção acima da média e do normal, tanta, que se complica para poupá-las das verdades que não suportarão.

 
Ser "complicado" é, de certa forma, se defender do medo que os demais sentirão (depois se transformará em ódio), quando vislumbrarem tudo (nada?) o que (não) são.

Ser "complicado" é saber-se eternamente alvo da inveja dos que simplificam para melhor oprimir e reinar. A simplificação engana porque facilita.

Ser "complicado" é ser capaz de polarizar o ódio e o amor dos que o cercam: doa ou faça sol; chova ou vente.

Ser "complicado" é amar, tanto a tantos que é parecer errado a cada um que seja amado em particular.

Ser "complicado" é aprender a privilegiar o amor e não quem ama.

Ser "complicado" não é ser atrapalhado, trapalhão, espalha brisas, borra-botas, caótico ou perdidão.

Ser "complicado" é ter tantas linhas de ação quanto as que constituem os pilares da própria vida afetiva, emocional, psicológica ou sexual.

Ser "complicado", enfim, meu jovem e assustado amigo, na opinião apressada dos outros a seu respeito, é estar aberto para o mundo, conseguindo vê-lo sem o ódio e a raiva com que se é visto, por colocar coisas inteligentes ou puras demais onde as pessoas querem menos, por comodismo, cansaço ou mesmo burrice.