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sábado, 2 de março de 2013

A geração da omissão

 

O importante nos tempos de hoje é parecer, e não ser.
Essa constatação se mostra inquestionável ao mesmo tempo em que nunca o patrulhamento pela subtração da individualidade crítica foi tão grande, com as redes sociais, a vanguarda da sublimação das comunicações interpessoais, vitaminando a receita.
O fato é que a idiotização da população não é mais um momento histórico, mas, sim, uma tendência com consequências previsivelmente catastróficas.
As novas gerações não leem. O saudável hábito da leitura não faz mais parte da sua educação formal ou familiar. E, consequentemente, não pensam, não conjecturam. Esses representantes legítimos do nosso futuro estão sempre conectados a algum fio de onde saem os piores produtos culturais já produzidos na história da humanidade. Exemplifico: o que é a música eletrônica senão o caos sem propósito e sensibilidade que premia a total falta de talento? E o que dizer do funk propagandeado em cadeia nacional e horário nobre? Isso para ficar apenas nas partituras musicais.
Obviamente essa não é uma colocação de extremismo radical. As exceções existem como sempre existiram em todos os momentos do homo sapiens sobre esse planeta. Entretanto, essas exceções, que sempre foram a pedra angular das grandes transformações e avanços, estão encurraladas como um organismo estranho frente a um sistema imunológico potente que só obedece à ordem de sobrevivência da estupidez.
Essas pequenas células, portanto, para sobreviver, mimetizam-se em idiotas funcionais. Nunca o silêncio foi tão mais valioso que a palavra bem empregada. Não falo aqui do silêncio inteligente, aquele de saber calar para melhor ouvir. Mas do silêncio do receio. O silêncio do tentar pertencer. O silêncio do saber-se impotente. O silêncio abafado da água que cai em terreno infértil e escaldante.
A inteligência, hoje, perturba e incomoda. Afinal, para que insistir na evolução e no pensamento se a regra vigente é a estagnação feliz?
Aldous Huxley, em seu Admirável Mundo Novo, já preconizava que a humanidade chegaria ao ponto da criminalização do questionamento. Um mundo onde todos, à custa de uma droga aplicada desde a inseminação de cada um, o Soma, aceitariam pacificamente a sua condição sem questionamentos de qualquer espécie. “Uma dose de Soma sempre funciona” era o mantra da felicidade construída artificialmente.
Inevitável o paralelo com os tempos hoje vividos. Quer um bom emprego? Não questione. Quer ser aceito? Omita. Almeja o sucesso? Não pense. A função única do indivíduo se transformou, através da castração da sua individualidade e do seu poder crítico, na pura, simples e bovina colaboração com a felicidade geral da manada, essa sim inquestionável e suprema por mais inverídica e artificialmente orquestrada.
Tempos difíceis esses nos quais nunca o ser foi tão subjugado ao parecer. E parecer, nesse caso, é definitivamente perecer.
  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Um ano depois...

    

Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje, fui ensinado.

Entretanto a questão principal não era abordada: você é feliz hoje?

Porque não faz nenhum sentido prejudicar-se a felicidade existente em busca da própria felicidade, mesmo travestida de uma nova felicidade ou uma maior felicidade. Nesse caso, todo cuidado é pouco e as coisas devem acontecer naturalmente.

De fato, a procura incessante que nos é impingida para fazer o “mundo girar” faz com que se viva perseguindo quimeras em uma vida paralela e desprovida da realidade, o que destrói a vida real. Dessa forma, a existência efêmera de cada um de nós acaba sem o sentido de perceber-se a cada segundo, apreciando a vida em cada um deles em sua plenitude.

     

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Um caso real de Natal

  

Quem é Bebel?

Por volta de meio dia de hoje, pelas câmeras de segurança, verifiquei que alguém tentava falar com o zelador pelo interfone em plena hora de almoço. Ouvindo a conversa, descobri que a pessoa queria deixar um cartão para alguém que ela não conhecia mas que morava no apartamento que tinha "a varanda iluminada".

Ele, obviamente e seguindo as instruções de segurança do condomínio, tratava de dizer que sem o nome do morador ele não poderia atendê-la nem direcionar qualquer coisa. Como tratava-se do meu apartamento, entrei na conversa e tentei entender do o que acontecia. Essa pessoa me desejou um Feliz Natal, agradeceu muito, e me disse que deixaria um cartão por debaixo da porta de entrada do prédio para que eu pegasse e entendesse a sua intenção e o seu agradecimento.

Anexo aqui a carta recebida. Ela demonstra que mesmo pequeníssimas ações em uma megalópole gigantesca como São Paulo podem modificar e influenciar positivamente a vida de alguém em particular e do mundo todo como consequência.

Obrigado, desconhecida Bebel! Você fez meu Natal muito feliz com essa lição.

Jingle Bells!!!
 



domingo, 8 de maio de 2011

Obesidade Mental

  

Significado de sensaboria: s. f. Fam. Ato ou acontecimento desinteressante, sem atrativos; insipidez.

*Prof. Andrew Oitke *

"O conhecimento das pessoas aumentou, mas é feito de banalidades."

O professor Andrew Oitke publicou o seu polêmico livro "Mental Obesity", que revolucionou os campos da educação, jornalismo e relações sociais em geral.

Nessa obra, o catedrático de Antropologia em Harvard introduziu o conceito em epígrafe para descrever o que considerava o pior problema da sociedade moderna.

"Há apenas algumas décadas, a Humanidade tomou consciência dos perigos do excesso de gordura física por uma alimentação desregrada. Está na altura de se notar que os nossos abusos no campo da informação e conhecimento estão a criar problemas tão ou mais sérios que esses."

Segundo o autor, a nossa sociedade está mais atafulhada de preconceitos que de proteínas, mais intoxicada de lugares-comuns que de hidratos de carbono. As pessoas viciaram-se em estereótipos, juízos apressados, pensamentos tacanhos, condenações precipitadas. Todos têm opinião sobre tudo, mas não conhecem nada.

Os cozinheiros desta magna "fast food" intelectual são os jornalistas e comentadores, os editores da informação e filósofos, os romancistas e realizadores de cinema. Os telejornais e telenovelas são os hamburgers do espírito, as revistas e romances são os donuts da imaginação.

O problema central está na família e na escola. Qualquer pai responsável sabe que os seus filhos ficarão doentes se comerem apenas doces e chocolate.

Não se entende, então, como é que tantos educadores aceitam que a dieta mental das crianças seja composta por desenhos animados, videojogos e telenovelas. Com uma "alimentação intelectual" tão carregada de adrenalina, romance, violência e emoção... é normal que esses jovens nunca consigam depois uma vida saudável e equilibrada.

Um dos capítulos mais polêmicos e contundentes da obra, intitulado "Os Abutres", afirma: "O jornalista alimenta-se hoje quase exclusivamente de cadáveres de reputações, de detritos de escândalos, de restos mortais das realizações humanas. A imprensa deixou há muito de informar, para apenas seduzir, agredir e manipular."

O texto descreve como os repórteres se desinteressam da realidade fervilhante, para se centrarem apenas no lado polêmico e chocante. Só a parte morta e apodrecida da realidade é que chega aos jornais. Outros casos referidos criaram uma celeuma que perdura.

O conhecimento das pessoas aumentou, mas é feito de banalidades. Todos sabem que Kennedy foi assassinado, mas não sabem quem foi Kennedy. Todos dizem que a Capela Sistina tem teto, mas ninguém suspeita para que é que ela serve. Todos acham que Saddam é mau e Mandella é bom, mas nem desconfiam por que. Todos conhecem que Pitágoras tem um teorema, mas ignoram o que é um cateto.

As conclusões do tratado, já clássico, são arrasadoras. Não admira que, no meio da prosperidade e abundância, as grandes realizações do espírito humano estejam em decadência. A família é contestada, a tradição esquecida, a religião abandonada, a cultura banalizou-se, o folclore entrou em queda, a arte é fútil... paradoxal ou doentia. Floresce a pornografia, o cabotinismo, a imitação, a sensaboria, o egoísmo.

Sensaboria: pra quem, como eu, não sabia o significado:
Ato ou acontecimento desinteressante, sem atrativos; insipidez.

Não se trata de uma decadência, uma "idade das trevas" ou o fim da civilização, como tantos apregoam. É só uma questão de obesidade. O homem moderno está adiposo no raciocínio, gostos e sentimentos. O mundo não precisa de reformas, desenvolvimento, progressos. Precisa, sobretudo, de "Dieta Mental."

Dalton Campos Roque

  

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Feliz 2011 !





  

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Jingle Bells

    

O Natal é extremamente interessante quando visto ao longe, de camarote, em visão panorâmica.

Não. Esse não é o início para mais uma elocubração sobre as irrealidades da época, o Papai Noel made in Coca-Cola ou a surreal ode ao consumismo, lugares comuns que tentam organizar criticamente aquilo que nada mais é que um analgésico adicional da existência em pleno verão. Incentivada inclusive por esse sol que nos abençoa para cá do equador nessa época, paira uma luz sobre a minha alma. Chamo-a de luz do Natal. E por mais alto que seja o nível de consciência que eu tente alcançar ela sempre vem, imperiosa e carregada de imagens, sons, sabores e cheiros da infância.

Não. Que não se iludam os leitores com o início de longas reminiscências sobre uma infância iluminada e feliz. Não é o caso. As lembranças talvez até estejam envoltas em celofane brilhante, mas isso é mero bônus das benesses com que às vezes o inconsciente nos assoma. Também não me refiro a desastres e tristezas épicas tão comuns nessas latitudes. Nada disso. Coisas comuns, família comum com tudo o que isso significa de positivo e negativo. Tampouco essa luz natalina que me assombra vem carregada de um espírito gregário. Aprendi há muito a graça da solidão, principalmente nesses momentos de espasmos sociais derretendo-se em calda de confraternização e suposta solidariedade com uma cereja de fraternidade em cima.

Isso posto, voltemos à luz do Natal e seus sinos e símbolos. Eles me enchem a alma como ícones que são, ao mesmo tempo distantes e ricos de uma religião qualquer. O recolhimento, quando lapidado por décadas, acreditem ou não, traz a felicidade. Enquanto multidões a procuram em aeroportos, estradas e rodoviárias encalacrados de esperanças vãs, esse simples espetáculo do desnorteio humano acontecendo a uma certa distância assegurada pelo cordão de isolamento do distanciamento pessoal é um bálsamo. Traz um sentido de plenitude que nenhuma ceia seguida de missa do galo é capaz de proporcionar.

E é assim que, inexoravelmente, acabo mais embebido de Natal que muita gente preocupada em ostentar azevinhos e anjos. Deparo-me comigo mesmo encharcado de uma data que, interiormente, organizo por outro nome. Um apelido. Nada original, já que os americanos o fizeram primeiro, comemorando em novembro uma data que, para eles, é ainda mais simbólica e importante que essa, o thanksgiving.

Desse modo, para mim, o Natal, como ponto mais agudo de um hábito metódico, é dia de agradecer. Sentir a plenitude de tudo o que existiu até hoje e os presságios daquilo que ainda está reservado. As canções natalinas embalam sonhos, as guirlandas trazem fadas mágicas, o ar aromas insuspeitos e, assim, dá-se a luminosidade do Natal. Pelo menos para mim, nesse meu pequeno camarote interior.

Jingle Bells!


   

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Molho Tártaro

   

Lembro-me de um comercial para TV dos tempos em que a publicidade brasileira ainda era respeitada e premiada pela sua criatividade, inteligência e competência. Tratava-se do lançamento do molho tártaro pronto, da Cica, novidade de 1984. No filme, um mongol vestido a caráter apresentava o produto e era interrompido por uma voz feminina em off: “é bárbaro!”, no que era imediatamente corrigida pelo mongol irritado: “não, é tártaro!” E assim se fazia a mágica da apresentação e venda de um produto de uma forma muito distante das gritarias “varejísticas” de hoje.

Eram 15 segundos preciosos. Vivíamos, naqueles tempos, as delícias das analogias proporcionadas pelo acúmulo do conhecimento. Apenas assim era possível entender a graça do comercial. Só para constar, os Tártaros eram um povo bárbaro que viveu por aproximadamente cinco séculos, três antes e dois depois de Cristo. Eram mongóis que durante muito tempo foram liderados por Átila, o Huno. Pois é. E tudo isso na TV aberta! Até porque nem havia cabo naqueles idos. E todos comentavam e se deliciavam com a perspicácia do criativo responsável.

Mas tudo isso é passado. Assim como na publicidade, o Brasil regrediu muito naquilo que mais interessa para um país que se pretende sério e respeitado: o conhecimento e o aprendizado. Hoje, quando o acúmulo de conhecimento das novas e nem tão novas gerações beira o zero absoluto, as analogias são impossíveis. Tudo é aquilo por aquilo. Tudo beirando o rés do chão. E quanto mais medíocre, mais valorizado. Tudo arrematado com o contraponto de ferozes ataques a qualquer iniciativa de cultura ou conhecimento coletivo.

Não, não se trata de nostalgia barata. Mas de uma cara constatação consternada de que as coisas desmoronam ao redor enquanto a impotência reina, uma vez que qualquer tentativa de argumento intelectual morre afogada num oceano repleto de ondas violentas de estupidez.

O mal é perspicaz. O mal realmente mau traveste-se de bem e, nesse nosso contexto nacional, apodera-se de medianas melhoras, reflexos de aprimoramentos globais, para criar a ilusão de um país do futuro agora, quando jamais estivemos tão distantes dessa meta. Não há progresso na ignorância. Não há bem-estar na burrice.

Trata-se realmente de um beco sem saída. O atual governo reduziu tudo à essência do nada, de uma verdadeira ode ao não-saber. Já estamos numa ditadura onde dados pessoais privados são manipulados politicamente, onde as instituições republicanas derretem ao calor dos crimes impunes e o culto à personalidade de uma nulidade cresce a passos largos. E o pior: ninguém diz nada. Onde estão nossos intelectuais? Nossos artistas? Nossos pensadores? Ninguém critica. Ninguém levanta a voz, anestesiados que estão pela morfina do “está tudo bem”.

Não. Não está. E, de repente, me pego em situações inusitadas e esdrúxulas que jamais imaginei serem possíveis. Eu, que lutei pelas eleições diretas quando os tanques ainda rondavam as ruas, começo a entender o até então incompreensível apelo aos militares por uma salvação impossível em coisas como a famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de tão triste memória em suas consequências. Como isso pode acontecer?

E é tudo tão claro visto de fora! O partido do governo acusa-se como vítima de uma imprensa que nunca foi tão subserviente ao poder. Tudo estudado. Tudo seguindo uma cartilha espúria de projeto autoritário de longo prazo. E dia a dia a liberdade se esvai com a louvação ao não-pensar.

Fato contemporâneo, o mundo virtual tem papel preponderante nisso. Ainda mais que apenas os corvos da neo-ditadura já aprenderam a utilizá-lo eficaz e adequadamente em seu benefício e em prol de seus planos de poder pelo poder. Para os menos atentos, reparem no final de cada reportagem dos principais jornais on-line. Com o supostamente admirável rótulo da liberdade de expressão, abre-se o terreno da informação a qualquer tipo de comentário, deixando livre o ambiente para a proliferação daquilo de pior que o ser humano produz quando oculto ou em conjunto, ou mesmo quando formam grupos ocultos, incluindo-se aí os partidários da atual ditadura em curso.

Trata-se, esse éter informático, de um universo onde todos dizem o que bem entendem. Reacionários brilham. Ineptos triunfam. Quadrilhas pagas e bem instruídas subvertem a verdade, maltratam-na, matam-na, enquanto caluniam a inteligência. O caráter, berço das diferenças de ideias, jaz inerte numa escuridão sem réstia de luz. E já não há para onde olhar com esperança, com twitters e facebooks praticando estupros consentidos de individualidades por todos os lados.

Vivemos tempos bárbaros. Ou tártaros, não importa. A ignorância está vencendo.


domingo, 8 de agosto de 2010

O Oriente é Estreito



Trata-se, amigos, de um título capcioso esse.

Temos uma forma, uma prerrogativa para tudo. Palavras e verbos inclusive. E a estreiteza nos leva sempre à noção de restrição e limitação.

Mas as coisas se invertem de acordo com as coordenadas geográficas. As latitudes e longitudes culturais trazem surpresas.

Outro dia, no parque, vislumbrei uma velha senhora japonesa sentada, a ler, num banco qualquer. Tinha entre os dedos miúdos um pequeno livro dobrado de forma que sobrava apenas uma tira de papel. Compenetrada estava, com a rigidez e a solenidade pacífica naturais aos orientais. Parecia imutável e inabalável. Ficava claro que, se alguém violento a ameaçasse ali ela simplesmente faria uma reverência e se retiraria em silêncio.

Essa cena me fez pensar. A própria forma de escrever e ler em japonês denota a essência do seu povo. A escrita japonesa não possui o despudor da horizontalidade do ocidente. Não requer livros abertos e espalmados. Uma linha contém uma ideia que cabe numa tira estreita que se aconchega entre os dedos. Liga dois pontos de forma vertical. Céu e terra. Como a perfeita tradução daquele quadro que eu vislumbrava.

Aquela senhora sabia seu lugar. Ponto na terra ligado ao divino em linha estreita e direta. O que lhe cabe é o ponto na superfície onde se encontra. Não havia ímpetos de se espalhar ou ânsia de abrangência. Nada de ocupar um espaço além do necessário e do devido.

A verticalidade exige equilíbrio. E quanto mais estreita a linha maior a destreza e a delicadeza para que as coisas se mantenham e a paz se componha. A estreiteza é, nesse contexto, sinônimo de sabedoria e talento exímio frente à existência.

Não sei quanto mais aquela leitura durou. Mas entendi a força que os elementos têm quando em perfeitas sintonia e harmonia.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Honra ao Mérito

   

Sou do tempo da medalha de honra ao mérito. Alguns podem argumentar que existiam medalhas demais naqueles idos, e é verdade. Medalhas militares de governantes biônicos. Mas essas faziam parte de um outro universo.

As minhas medalhas, essas a que me refiro, eram obtidas na escola sempre que um aluno se destacava por qualquer motivo em qualquer área. Era um tempo de Honra. E Mérito. Assim mesmo, com letras maiusculamente garrafais. Os pais se orgulhavam dos seus filhos quando esses eram laureados e, quando não o eram, incentivavam os pequenos para tal. Aqueles pequenos símbolos de sucesso eram pregados orgulhosamente em quadros nas paredes dos quartos ou, quando não havia possibilidade e espaço, em caixas de sapato primorosamente promovidas a um tipo de baú de tesouros.

Os professores, por sua vez, faziam a sua parte como catalisadores desse processo salutar de saltos quânticos de aprendizado e saber. Hoje, é muito duro constatar, a honra já não significa muito e o mérito vale absolutamente nada. Senão, como explicar professores da rede estadual de São Paulo protestando nas ruas CONTRA a meritocracia como balizadora de salários? Pergunte-se a esses pretensos educadores: existe outra saída para uma classe que forma alunos analfabetos funcionais?

Alguns dizem que essa era uma manifestação derivada de uma greve política. Mas, calma aí! As tendências e vertentes políticas não deveriam andar distante da educação? Ou será que percorremos tão pouco caminho desde o tempo dos quepes no poder? Ali sim, as escolas e professores eram obrigados a determinadas linhas de conduta e ensino. Mesmo assim, ousada e bravamente, esses educadores de então resistiam e, pasmem as novas gerações, ensinavam! Isso por amor ao ofício e à responsabilidade de professor, correndo, muitas vezes, riscos pessoais.

Por outro lado, e como um espelho distorcido e às avessas, nossos professores de hoje limitam-se não a resistir, mas a vestir a carapuça pelega de um pretenso poder popular que honra o demérito, a ignorância e o semi-analfabetismo.

Onde vamos parar? Lutei em passeatas amarelas pelo direito de viver em um estado democrático e de direito. É hora de questionar: Existe democracia e direito onde não há honra ou mérito?

É óbvio que não.

 
 

terça-feira, 13 de abril de 2010

Leitura Obrigatória

  

O AI-13 dos militontos

Artigo de Reinaldo Azevedo

A exemplo dos contestadores do filme A Vida de Brian (alugue hoje mesmo), do grupo inglês Monty Python, os inimigos atuais da civilização perguntam em tom desafiador e eu lhes respondo com os fatos:

O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, 'Ato Institucional nº 13'. Os 'direitos humanos' são, no AI-13, o que a 'segurança nacional' era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.

– O que foi que esse modelo nos deu?

– A democracia!

– É verdade! Ele nos deu a democracia. Fora a democracia, o que foi que esse modelo nos deu?

– A segurança jurídica!

– É, ele nos deu isso também. Fora a democracia e a segurança jurídica, o que nos deu esse modelo?

– A igualdade perante a lei!

– Tá bom, vá lá. Fora a democracia, a segurança jurídica e a igualdade perante a lei, o que é que esse maldito modelo nos deu?

– As vacinas?

– Além da democracia, da segurança jurídica, da igualdade perante a lei, das vacinas, respondam: o que nos deu esse modelo?

– Os antibióticos!

– Perguntarei pela última vez: sem contar a democracia, a segurança jurídica, a igualdade perante a lei, as vacinas e os antibióticos, que diabos nos deu esse modelo?

– O vaso sanitário!

– Ora, cale-se!

A Conferência de Cultura, realizada há pouco mais de duas semanas, reuniu essa gente pitoresca que poderia ter saltado da tela do filme do Monty Python e definiu como uma das 32 prioridades de governo "registrar, valorizar, preservar e promover as manifestações de comunidades e povos tradicionais, itinerantes, nômades, das culturas populares, comunidades ayahuasqueiras" e por aí vai. Isso deve ser feito com recursos do estado, o Leviatã transformado em incubadora de estranhezas. Se você, leitor, não se encaixa em nenhum dos grupos acima, então é só um "entre outros", integrante de uma maioria que encarna aquela outra "tradição", permanentemente saqueada por particularismos. Refiro-me à velha e desprezível civilização ocidental, com o seu opressivo culto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada, à língua pátria, às vacinas e aos antibióticos. Essas bobagens que nos têm causado tantos dissabores e que afastam o homem da sua "verdadeira essência".

O caso dos "ayahuasqueiros", os consumidores do daime, é emblemático. Eu não sei qual é a "verdadeira essência" do homem. Talvez eles saibam. Parece que a bebida os ajuda a chegar lá. Só não entendi por que essa "cultura" tem de ser protegida pelo estado, que deve, segundo a proposta, investir dinheiro público na sua difusão. Gilberto Gil, quando ministro, encaminhou um processo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que o uso do chá seja considerado "patrimônio imaterial do povo brasileiro", ainda que você, leitor, reacionário como é, não tome nada além de chá de camomila. Os mais ousados arriscam contornar a melancolia desta vida besta com Prozac ou Zyban, que vieram à luz depois de muitas décadas, e milhões de dólares, de pesquisa. Os antidepressivos podem merecer uma ode, jamais uma litania; no máximo, um canto pagão, nunca um hino místico.

A proposta da conferência é um sintoma, não o mal em si. Não tenho sobre o futuro uma visão apocalíptica ou redentora. Não aposto nem em danação nem em salvação. A história não tem epílogo. Há uma perspectiva bem menos dramática do que o fim dos tempos. É a mediocridade, a vida das exigências rebaixadas. No Brasil e mundo afora, uma atmosfera de boçalidades doces e caridosas, excepcionalmente violentas, vai espalhando os seus miasmas. A língua alemã tem uma palavrinha bacana que merece entrar neste texto: Zeitgeist, ou "espírito do tempo". Esse espírito anda muito propício ao assalto à razão, à ciência, à segurança jurídica, à produção, ao desenvolvimento, à propriedade privada e à língua pátria – e isso serviria à construção do "novo homem". As velhas esquerdas acreditavam que o comunismo era o portal da nova era. Deu errado. As novas esquerdas desistiram de reinventar a civilização. Dá muito trabalho. Basta-lhes depredá-la.

Essa depredação da ordem democrática exige agora o patrocínio do estado e é promovida por seus próprios agentes. Em duas conferências, a de comunicação e aquela de cultura, os militantes aprovaram propostas que, se aplicadas, resultarão em censura à imprensa. O Programa (Nacional-Socialista) dos Direitos Humanos, na forma como está, submete a Constituição ao que chamo, em homenagem ao número do PT, "Ato Institucional nº 13". Os "direitos humanos" são, no AI-13, o que a "segurança nacional" era no AI-5 do regime militar. Em nome dela, podia-se suspender qualquer garantia; em nome deles, também.

Lula chegou à síntese perfeita "dessa nova segurança nacional" na semana passada, quando atacava, mais uma vez, a imprensa: "É triste quando a pessoa tem dois olhos bons e não quer enxergar. Quando a pessoa tem direito de escrever a coisa certa e escreve a coisa errada". As ditaduras costumam cassar do jornalismo o direito de escrever certas coisas. Mas só os regimes totalitários se arvoram em decidir o que é "certo" ou "errado". As ditaduras não têm vergonha de se impor pela violência. O totalitarismo, violento se preciso, quer se impor como senhor da virtude. O AI-5 foi pensado para uma ditadura; o AI-13, que pune quem "escreve a coisa errada", para um regime totalitário. Aquele só podia ser imposto debaixo de porrete; este outro tem o apoio entusiasmado de supostos "representantes da sociedade civil", as "minorias organizadas", e espera contar com nossa sujeição voluntária.

As tropas de assalto à ordem democrática estão ativas. Um desses ongueiros financiados pela Fundação Ford justificou assim o "caráter democrático" do programa de direitos humanos: "Ele foi debatido por 14.000 pessoas!". É mesmo? Um deputado federal em São Paulo precisa de, no mínimo, uns 100.000 votos para ter direito a ser apenas um voto na Câmara. Um senador precisa de mais de 8 milhões! Os militontos pretendem destruir o valor universal da democracia com o apoio de 14.000 sectários...

"Estou com saudade dos velhos marxistas", pensei alto outro dia em conversa com Diogo Mainardi. Ele respondeu com uma surpresa silenciosa, o que me permitiu emendar: "Você se lembra do tempo em que a gente contestava um pensamento que, por mais cretino que fosse, ainda aspirava à condição de um humanismo? Sabíamos que as teses daquela gente, quando aplicadas, haviam resultado no horror. Mas tínhamos de combater um aparelho teórico que, embora construído com mentiras, tinha ao menos bibliografia. Hoje restaram a barbárie, a pistolagem e a ignorância escandalosa". Eu estava, leitor, sob o efeito de uma terrível droga moral, que havia chegado ao blog na forma de um comentário.

VEJA noticiou na semana passada que Delúbio Soares, aquele!, foi patrono de uma turma de formandos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Goiatuba, no interior de Goiás, uma instituição pública. Ele pagou 6.000 reais e deu uma palestra sobre "ética na política". Abordei o assunto e recebi uma mensagem de um professor da escola, membro do PT local. Numa língua entre o português e o javanês antigo, ele tentou me explicar: "Temos um entendimento sobre o mensalão bem mais amplo. Não achamos que a criminalização das pessoas que são acusadas de praticarem atos semelhantes (financiamento de campanha com dinheiro não contabilizado) venha resolver os problemas de corrupção de nosso país"... Ele tem razão. O entendimento civilizado dessa questão é mesmo menos amplo: lugar de bandido é na cadeia.

A civilização vencerá no fim? Essa história não tem fim. Estaremos sempre no começo.

  

Os Filhos do Lixo

Lya Luft-Veja (12/4/2010)


Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje.

Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome.

A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né?".

O relato dessa quase adolescente e o de outras eram parecidos: todas com filhos pequenos, duas novamente grávidas e, como diziam, vivendo a sua sina – como sua mãe, e sua avó, antes delas. Uma chorou, dizendo que tinha estudado até a 8ª série, mas então precisou ajudar em casa e foi catar lixo, como outras mulheres da família. "Minha sina", repetiu, e olhou a filha que amamentava. "E essa aí?", perguntou a jornalista. "Essa aí, bom, depende, tomara que não, mas Deus é quem sabe. Se Ele quiser..."

Os diálogos foram mais ou menos assim; repito de memória, não gravei. Mas gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo. Sentadas sobre o lixo. Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo. Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso.

Não sei como é possível alguém dizer que este país vai bem enquanto esses fatos, e outros semelhantes, acontecem. Pois, sendo na nossa pátria, não importa em que recanto for, tudo nos diz respeito, como nos dizem respeito a malandragem e a roubalheira, a mentira e a impunidade e o falso ufanismo. Ouvimos a toda hora que nunca o país esteve tão bem. Até que em algumas coisas, talvez muitas, melhoramos. Temos vacinas. Existem hospitais e ensino públicos – ainda que atrasados e ruins. Temos alguns benefícios, como aposentadoria – embora miserável –, e estabilidade econômica aparente. Andamos um pouco mais bem equipados do que 100 anos atrás.

Mas quem somos, afinal? Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem. Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer?

Pelo menos, reclamar. Achar que nem tudo está maravilhoso. Procurar eleger pessoas de bem, interessadas, que cuidassem dos lixões, dos pobrezinhos, da saúde pública, dos leitos que faltam aos milhares, dos colégios desprovidos, de tudo isso que cansativa mas incansavelmente tantos de nós têm dito e escrito. Que pelo menos a gente saiba e, em vez de disfarçar, espalhe. Não para criar hostilidade e desordem, mas para mudar um pouquinho essa mentalidade. Nunca mais crianças brasileiras sendo filhas do lixo, nem mães dizendo que aquela é a sua sina, porque Deus quer assim.

Deus não quer assim. Os deuses não inventaram a indiferença, a crueldade, o mal causado pelo homem. Nem mandaram desviar o olhar para não ver o menino metendo avidamente na boca restos de um bolo mofado, talvez sua única refeição do dia. E, naquele instante, a câmera captou sua irmãzinha num grande sorriso inocente atrás de um par de óculos cor-de-rosa que acabara de encontrar: e assim se iluminou por um breve instante aquela imensa, trágica realidade.

 

quinta-feira, 11 de março de 2010

Coisas de Clarice - 2

  
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.”


Clarice Lispector
 
 
 
 
 
  

quarta-feira, 10 de março de 2010

Jardinagem

    

Gosto da profissão de jardineiro. Não a trocaria pela de nenhum executivo com jatinho que cruza estressados ares de responsabilidades rarefeitas.

Não me refiro aqui a jardineiro de outrem, suscetível aos caprichos e gostos de terceiros. Falo do jardineiro interior, do jardineiro de mim mesmo, cultivador de minh'alma.

Para tecer os jardins interiores é necessário, acima de tudo, tempo. Tempo e observação. Escolher as melhores flores e folhagens e distribuí-las pelos seus cantos naturais. Verificar o aroma das estações que se anunciam com a regularidade do universo e esperar as consequências vantajosas e cuidadosas de cada uma delas. Examinar, detectar e eliminar as pragas que podem, de um momento para o outro, destruir todo um conteúdo pelo prazer sádico da inveja e da maledicência.

Tarefa árdua essa. Observação plena de variáveis inconstantes. Cuidados cirúrgicos com a delicadeza das tramas de pétalas e folhas. Mas quando tudo está na plenitude dos seus lugares e luzes, quanto brilho!... Quanta recompensa.

Enquanto isso, lá nos ares dos jatos e escritórios suspensos, almas estéreis recriam as receitas de sempre levando-se pateticamente a sério. São decoradas com flores de plástico que, se não morrem, desbotam esvanecendo o falso viço da superficialidade e do artificialismo.

Não são jardineiros, mas sim espantalhos de si mesmos.
 

terça-feira, 9 de março de 2010

Coisas de Clarice



“Ter nascido me estragou a saúde.”

                                         Clarice Lispector

segunda-feira, 1 de março de 2010

Tristes Ventos

  

O mar não está para peixe.

É deveras inquietante estar atento e colher sinais de distúrbios que ocorrem num grau macro e que, de tão abrangentes, acabam passando por certezas inexoráveis ou desdobramentos tão consequentes quanto inocentes do tempo e da história.

Nesses desvios da existência humana, a apatia impera e o dom de se rebelar contra absurdos se dissolve. É preocupante. Afinal, nunca antes na história desse país tivemos um governo tão alheio à moral e tão desleal à legalidade. E nos amplos espaços pátrios nada se faz, nada se comenta, nada surpreende. Inexiste o espanto. O atual presidente faz campanha descaradamente ilegal e a população, assim como a oposição, não se manifesta. É como se as coisas fossem assim mesmo, fazer o que?

Lembro-me, para efeito de comparação numa linguagem popular, da última cena da novela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Brassères, onde nos idos de 1988 um Reginaldo Faria corrupto escapava do país num jatinho com dinheiro originário de golpes e desvios dando uma banana ao território nacional e aos cidadãos de bem. Tudo ao som de uma Gal (ainda) Tropical interpretando um profético Cazuza cantando “Brasil, mostra a tua cara...”. Lembro-me também que houve certa comoção e desconforto por parte dos telespectadores, mas ali mesmo já poderíamos perceber, com boa lupa, o embrião do letal “é assim mesmo”.   (Veja ou reveja aqui)

O que assistimos hoje - e infelizmente distante da ficção televisiva - é o esgarçamento do tecido moral de uma população que nunca primou pela atenção e pela indignação frente às situações dissolutas. Mesmo com campanha antecipada e ilegal, a candidata desconhecida e inexperiente do atual presidente ganha votos e se aproxima de uma vitória que nos leva, lenta e gradualmente, a transformarmo-nos numa grande Venezuela. O que cega e insensivelmente não nos damos conta é que já temos todos os componentes para isso, de Lula a Garcias, de Amorins a Dirceus, entre tantos luminares desses novos tempos.

Entretanto, para não nos fixarmos no terreno pantanoso da discussão política, podemos voltar ao ambiente das ondas da televisão e analisar a mais recente edição do reality show mais popular do país, o Big Brother Brasil 10.

Antes de qualquer coisa e servindo como mais um alerta, muita gente boa, sem nenhuma razão consistente, torce o nariz para o tal programa ao mesmo tempo em que se traveste de samambaia frente aos indícios muito mais dramáticos advindos do Planalto Central. E esse é outro sinal de que as coisas não vão bem com a inteligência nacional...

Mas voltemos ao programa que nada mais é que uma eleição direta semanal que envolve boa parte do Brasil: nessa edição, o participante protegido e adorado, que caminha a passos largos para a vitória e para o prêmio de 1,5 milhão de reais, é um homem manipulador, preconceituoso, ignorante e sem nenhum pudor, escrúpulo ou caráter. E a quantidade de pessoas que se dispõem a defendê-lo, mesmo publicamente, a começar pelo diretor da programação, é o exemplo acabado da dissolução e corrosão do caráter nacional.

No país que nunca antes subornou e comprou tantos cidadãos com bolsas-para-tudo, a ausência macunaímica de caráter passou a ser a regra. E sem caráter, a estrutura moral cede tal qual edifício com alicerces corrompidos.

É. Estamos, de fato, num momento histórico tingido de cinza. São ventos tristes que trazem a angústia característica das situações onde cidadãos de bem valem muito menos que aqueles dotados de certa esperteza psicótica embasada pela teoria de que os fins justificam os meios e pessoas são apenas componentes a serem utilizados ou descartados em função desses mesmos fins.

Resta, à boa nação brasileira, a noção da precariedade da direção e da natureza dos vendavais. Os ventos vêm e vão. Sopram de cá e de acolá. Mas há sempre o prazer e a satisfação evolutiva embutidos na calmaria.

O resto, como diz a sabedora popular, é ventania. 
    

domingo, 24 de janeiro de 2010

Os danos irreparáveis da reforma

   

O povo brasileiro, de fato, possui um parentesco enorme com os bovinos. Não pelo que esses animais são em sua nobreza, utilidade e tranquilidade, mas por aquilo que se convencionou desse comportamento plácido: a inoperância e a obediência bestializada e amorfa.

Isso fica absolutamente claro no caso da reforma ortográfica imposta, no ano passado, pelos burocratas ineptos de plantão. A justificativa de unificar a língua portuguesa não procede até porque países cujos povos são menos aparentados às vacas simplesmente a ignoraram, caso da pátria-mãe Portugal, por exemplo, que simplesmente não a considerou e não se fala mais nisso. Já por aqui... Bem, mais uma vez aceitamos bovinamente o inconcebível.

As pessoas frequentemente querem ser complicadas onde deveriam simplificar e se metem a serem simples e pragmáticas onde a questão é profundamente danosa. E não falo aqui do trema, já praticamente em desuso e, essa sim, uma mudança legítima causada pelo uso de uma língua viva. Nem do charme - agora decaído - de algumas belas junções de palavras com o hífen. Esses são casos que empobrecem a língua, mas possuem alcance menor naquilo que realmente conta: a seara moral das palavras. Sim, as palavras também tem uma moral que faz com que elas signifiquem o que significam em sua plenitude. E, nesse contexto, nenhum grupo delas foi mais aviltado que a ideia e suas congêneres.

Não cabe aqui entrar na demanda de explicações gramaticais. Como já disse, é na moral que reside o desastre. Senão, vejamos, começando pela própria idéia, que nunca terá o mesmo brilhantismo sendo uma pobre ideia que deveria soar, respeitando-se a fonética, com um “e” fechado e inconcluso. Trata-se de um dano moral irreparável. Nesse mesmo sentido, uma plateia (ou, com o perdão da utilização de um outro acento para indicar seu novo som, platêia) nunca será tão vibrante e terá os mesmos aplausos soantes e consoantes de uma boa platéia. E a patuléia, então? Uma forma mais digna e elegante de classificar a plebe ignara passa de palavra quase rara, e por isso valiosa, para a total insignificância de sentido em seu novo som se considerada ao pé da letra. E assim os exemplos se multiplicam.

Entretanto, nenhuma palavra é mais significativa para demonstrar os danos irremediáveis na grandeza da língua que epopeia. Num país já tão pobre de cultura e significados maiúsculos, jamais teremos uma epopéia de fato: Grandiosa. Homérica. Comparar uma épica epopéia com uma “epopêia” é, guardadas as proporções, como comparar um jogo de várzea com a final de uma copa do mundo. Desastroso dano que só poderia advir de um governo analfabeto que não possui a capacidade de entender a extensão daquilo que propõe.

Ficamos, portanto, nós, brasileiros, na posição histórica e ingrata de colônia, agora pateticamente colocada na posição de rato que ruge dando um tiro no próprio pé. O Brasil é, pelo que se tem conhecimento, o único rincão que deu alguma atenção concreta a essa nefasta reforma.

Resta, na terra do samba, suor e cerveja, uma vantagem que retrata bem a natureza da parte positiva da coisa toda: as mulheres extremamente feias, no dito popular, passam a ser, talvez, as únicas (além dos analfabetos de plantão - administração federal inclusa) que tiram alguma vantagem dessa triste fuzarca. Afinal, uma mocreia é sempre menos impactante verbalmente e na sua feiura congênita que uma legítima mocréia.


           

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Solidão é fundamental

    

Insofismável verdade lapidada de forma cristalina pela Hilda Lucas... As coisas mais básicas da existência são, de fato, as mais difíceis de se apreender.

Que me desculpem os desesperados, mas solidão é fundamental para viver.


Solidão é fundamental
Por Hilda Lucas

Solidão é requisito para nascer e para morrer.

Que me desculpem os desesperados, mas solidão é fundamental para viver.

Sem ela não me ouço, não ouso, não me fortaleço. Sem ela me diluo, me disperso, me espelho nos outros, me esqueço. Sem ela os silêncios são estéreis e as noites sôfregas, povoadas de assombramentos e desejos insaciáveis. Sem ela não percebo as saídas, os milagres, os espinhos. Não penso solto, não mato dragões, não acalanto a criança apavorada em mim, não aquieto meus pavores, meu medo de ser só. Sem ela sairei por aí, com olhos inquietos, caçando afeto, aceitando migalhas, confundindo estar cercada por pessoas com ter amigos.

Sem ela me manterei aturdida, ocupada, agendada só para driblar o tempo e não ter que me fazer companhia. Sem ela trairei meus desejos, rirei sem achar graça, endossarei idéias tolas só para não ter que me recolher e ouvir meus lamentos, meus sonhos adiados, meus dentes rangendo. Sem ela, e não por causa dela, trocarei beijos tristes e acordarei vazia em leitos áridos. Sem ela sairei de casa todos os dias e me afastarei de mim, me desconhecerei, me perderei.

Solidão é o lugar onde encontro a mim mesma, de onde observo um jardim secreto e por onde acesso o templo em mim. Medo? Sim. Até entender que o monstro mora lá fora e o herói mora aqui dentro. Encarar a solidão é coisa do herói em nós, transformá-la em quietude é coisa do sábio que podemos ser.

Num mundo superlotado, onde tudo é efêmero, voraz e veloz, a solidão pode ser oásis e não deserto. Num mundo tão volúvel, desencantado e ansioso, a solidão pode ser alimento e não fome. Num mundo tão barulhento, egoísta, atribulado, a solidão pode ser trégua e não luta. Num mundo tão estressado, imediatista, insatisfeito, a solidão pode ser resgate e não desacerto. Num mundo tão leviano, vulgar, que julga pelas aparências e endeusa espertalhões, turbinados, boçais, a solidão pode ser proteção e não contágio. Num mundo obcecado por juventude, sucesso, consumo, a solidão pode ser liberdade e não fracasso.

Tempo e solidão são hoje os bens mais preciosos, o verdadeiro luxo.

Marque encontros com você mesma. Experimente. Dê-se um tempo. Surpreenda-se. Solidão é exercício, visitação. É pausa, contemplação, observação. É inspiração, conhecimento. É pouso e também vôo. É quando a gente inventa um tempo e um lugar para cuidar da alma, da memória, dos sonhos; quando a gente se retira da multidão e se faz companhia. Quando a gente se livra da engrenagem e troca o medo de ser só pela coragem de estar só. Não falo de isolamento, nem ruptura ou apartamento. Adoro gente mas, mesmo assim, e talvez até por isso, preciso de solidão. Preciso estar em mim para estar com outros.

Ninguém quer ser solitário, solto, desgarrado. Desde que o homem é homem, ou ainda macaco, buscamos não ficar sozinhos. Agrupamo-nos, protegemo-nos, evoluímos porque éramos um bando, uma comunidade. Somos sociáveis, gregários. Queremos família, amigos, amores. Queremos laços, trocas, contato. Queremos encontros, comunhão, companhia. Queremos abraços, toques, afeto. É a nossa vocação. Mas, ainda assim, revendo o poeta, ouso dizer: é preciso aprender a estar só para se gostar e ser feliz.

O desafio é poder recolher-se para sair expandido. É fazer luz na alma para conhecer os seus contornos, clarear o caminho e esquecer o medo da própria sombra. Existem pensamentos, orações, sorrisos, encontros e realizações que só acontecem quando estamos a sós. Existem curas, revelações, idéias, lembranças que só podem vir à tona quando estamos sós. Mesmo os momentos compartilhados só serão inesquecíveis se uma parte nossa estiver inteiramente só para apreender tudo que apenas a nós se revelará e tocará.

Existe uma pessoa que só conhecemos se conseguimos ficar sós: nós mesmos!

Seja amigo da solidão. Aceite seus convites, passeie com ela, desmistifique-a. Não corra dela, não tenha medo. Desassombre-se. Ouse a solidão e fique em ótima companhia.
      

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viver é falar de corda em casa de enforcado

   

Esse cara aí ao lado é o Paulo Mendes Campos. Ele é o autor de uma preciosidade a mim enviada pela Tekinha, um anjo sempre próximo, onde conseguiu dar a textura das palavras e pensamentos a um país das maravilhas que sempre me deixou mudo de estupefação. Vale a pena ler. Para quem sabe e é:



 Para Maria da Graça
(Paulo Mendes Campos)


Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca.

Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

A realidade, Maria, é louca.

Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?" Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano.

"Quem sou eu no mundo?"

Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável.

Foi o que Alice falou no fundo do poço:

"Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos.

Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave. A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado.

Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gosta de gatos, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida.

São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou ?"

É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste. Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes.

Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos.

Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha.

Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo.

A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas.

Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado.

Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Cortar o tempo



Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.

Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Deslizando no ônix



Passei meu aniversário na Amazônia. Era um sonho antigo e, como não poderia deixar de acontecer com um sonho dos bons, a intangibilidade quando se torna palpável tem um sabor indescritível de coisa a ser guardada naquele ambiente onde se preserva, tal rosa em livro, a essência de sonho.

Na Amazônia, nos confins da Amazônia, a solidão, a escuridão, a luminosidade e o silêncio são sempre superlativos. De repente percebo, observando o existir passar em paisagem, que o planeta entra nos eixos. De uma forma ou de outra, os amplos espaços vazios construídos de amplidão alinhavada à amplitude elevam a consciência, colocando o ser humano no seu devido lugar na ordem das coisas.

É... Deveríamos, de fato, ser mais raros. Seria melhor assim como nesses sertões úmidos. Não fazemos a menor falta em larga escala.

Enquanto escrevo estou, mais precisamente, no Rio Negro. Há três dias adentro mais e mais esse país. País sem celular, internet, ou qualquer tipo de contato moderno com a realidade contemporânea. Aos poucos a alma se desapega de tudo. Resta a saudade daquilo que realmente faz falta na vida. Daquelas pessoas que são verdadeiramente importantes. O resto cai no devido e merecido limbo das desimportâncias.

E foi nesse contexto das importâncias colocadas nos seus devidos tamanhos e compartimentos que mais cedo, numa viagem de barco, fui tomado de emoção súbita. Vi-me deslizando sobre um mar de ônix. O escuro profundo do Rio conhecido não por nenhum acaso com Negro revelou-me, súbito, onde estava o verdadeiro ouro seu homônimo. Muito se fala sobre o petróleo ou o pré-sal, mas quando se tem o privilégio de regredir às essências acaba-se por perceber onde o verdadeiro tesouro está. E é todo nosso.

Adianto aqui que nunca perdi a noção da pequenez da minha empreitada. Apesar dos dias a fio embrenhando-me na mata, sabia que não percorria um centímetro sequer no mapa do Brasil. E, no entanto, quanto rio!... Quanta vida banhada pelo negro ônix encarnado em autoestrada formada pela grande riqueza que o homem, na sua multiplicação exponencial e futuro cada vez mais sombrio, acaba por ambicionar como bem mais precioso. O néctar que faz a vida possível: A água doce. Amniótico líquido abundante, gentil, fértil e repleto de seres indiferentes ao distante caos que construímos urbanamente. Quilômetros e quilômetros de vida em estado bruto, equilibrada e pulsante como reflexo de um universo que ninguém explica. Réplica aquática do balé estelar das galáxias. Tudo em seu lugar e na sua ordem.

Temperadas, assim, em encantamento, as horas se passaram. E assim foi.

Pássaros e botos coordenaram o entardecer de silêncio cantado em verso e prosa pelos sons da natureza. A noite caiu lenta e soberana. Nenhum aspecto ou pista do vibrar noturno das cidades. Simplesmente a escuridão que ressalta ainda mais a percepção de isolamento e impotência perante aquilo que deve ser a expressão maior do divino.

De repente, por detrás da floresta, surge a lua, eloquente. E com sua luz e reflexos completa os acordes dessa sinfonia perfeita de ensinamentos sobre a verdadeira dimensão das coisas e de nós mesmos.

Resta um agradecimento transmutado em prece. E o reconhecimento das coisas como elas deveriam ser. E sempre serão, de uma forma ou de outra.

A natureza sempre reage. A natureza é sincera. Nós é que embalsamamos os mortos.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Um TAPA na resenha

          

Amigos a gente não critica em público. Na amizade, o que ocorre são toques e opiniões carinhosamente colocadas ao pé do ouvido. Por isso, é sempre um alívio quando pessoas de quem a gente gosta acertam naquilo que fazem.

Foi dentro desse contexto que escrevi o texto a seguir. Uma bela experiência protagonizada por queridos amigos:



Cloaca (Maria Goos) – Resenha

CLOACA: n substantivo feminino

1. fossa, canal ou cano destinado a receber dejeções
2 . coletor de esgoto
3 . vaso sanitário; latrina
4. escoadouro de águas; vala, sarjeta
5. depósito de imundícies; monturo
6 . tudo o que é imundo, que tem mau cheiro
7 . nos anfíbios, répteis, aves e muitos peixes, câmara comum onde os sistemas digestivo, excretor e reprodutor descarregam seus produtos.

(Dicionário Houaiss)


“Vocês não vão me dizer que existe um significado real para a expressão ‘cloaca’... Existe?”

A indagação do político Jan (André Garolli) sobre a expressão usada como saudação pelos quatro amigos de juventude, que frequentaram juntos a faculdade, além de ressaltar toda a sua mediocridade pessoal e profissional dá o tom do argumento dessa peça de autora holandesa sobre o reencontro e balanço de vida entre eles.

De fato, essa indagação, que ressurge duas ou três vezes durante o decorrer do texto, dá pistas profundas daquilo que corre nos subterrâneos daquele encontro que não consegue acobertar as suas faces de desencontro. Além de Jan, Tom, advogado viciado em cocaína (Dalton Vigh), e Marten (Brian Penido Ross), diretor de teatro às vésperas de uma estreia, se reencontram na casa de Pieter (Tony Giusti), um funcionário público gay que se envolve nas relações corporativas que lhe facilitavam o acesso ao arquivo de objetos da prefeitura e acaba acusado de apropriação indébita de obras de arte.

É essa acusação, que coloca em xeque a vida atual e o destino de Pieter, que acaba por reunir novamente os amigos. Jan vive uma crise no casamento exatamente quando, por conchavos políticos, está prestes a se tornar ministro. Para manter as aparências durante o processo, pede refúgio na casa de Pieter. E o fato de estar sendo recebido na casa de um amigo homossexual puxa a primeira ponta de um novelo onde se emaranham preconceitos, interesses, desajustes e frustrações e onde todas as facetas de cada um dos personagens se expõem como metal às intempéries e ao tempo, fazendo com que a amizade não resista aos desgastes e, assim como a ferrugem destrói o mais sólido dos metais, as relações acabam por se dissolver.

O que assistimos durante quase duas horas, acompanhados por uma iluminação exata e emoldurados pelo belíssimo cenário de Lola Tolentino, são diálogos aparentemente superficiais, mas que possuem a profundidade natural dos abismos pessoais de cada um de nós. Os fragmentos de vida expostos sem pudor mostram quatro homens que não chegaram a se completar. São esboços daquilo que poderiam ser ou ter se tornado e, nesse contexto, a crise masculina da meia-idade, os projetos desfeitos, os vícios, as projeções dos egos e os conflitos interiores desnudam-se de forma muitas vezes egoísta e alienada.

Pieter carrega a culpa e o sentimento de alvo social resultantes de sua opção sexual. Jan é..., bem, Jan é um político. Amoral e sem escrúpulos, é aquele que, mesmo como hóspede, reforça e amplifica os temores e sentimentos negativos de Pieter sobre ele mesmo. Marten, mais impermeável às críticas ácidas dos amigos sobre os seus espetáculos, tenta reforçar as suas estruturas e manter-se de pé através de uma pretensa qualidade de potência sexual que começa a apresentar falhas. Já Tom, o advogado recém-saído de uma internação e da reabilitação, é o grito de revolta de toda uma vida sintetizado no vício da cocaína e reforçado pelo porte físico e pela brilhante atuação de Dalton Vigh.

Nessa ciranda adulta dançada na sala de Pieter fica claro que, se há algo que resta daquilo que um dia foi a sólida e intensa amizade entre aqueles ex-jovens, é a sua senha pessoal. A saudação Cloaca!, mesmo sem que os personagens se apercebam disso, é o chamado e o grito de guerra que exala e anuncia, a cada cena, os perfis dos esgotos interiores de cada um dos envolvidos.

Sob a direção sempre certeira de Eduardo Tolentino, o Grupo Tapa acerta mais uma vez. A cena final que explicita o destino de Pieter e a responsabilidade de cada um dos amigos nesse desfecho arremata um espetáculo onde o riso se dá sempre através de maxilares cerrados. Não há espectador, na faixa dos 40 anos, que não saia com um gosto amargo na boca. Um gosto de passado e sonhos frustrados que consideramos pessoais e intransferíveis mas que, em cena, acabam colocados como fato comum à categoria humana.

Na saída do teatro, os acordes e a letra de let it be funcionam quase como um conselho pessoal a cada um atingido pelo vórtice de sensações onde amizade, interesse e egoísmo são equilibristas em corda bamba.

Deixe estar.