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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Molho Tártaro

   

Lembro-me de um comercial para TV dos tempos em que a publicidade brasileira ainda era respeitada e premiada pela sua criatividade, inteligência e competência. Tratava-se do lançamento do molho tártaro pronto, da Cica, novidade de 1984. No filme, um mongol vestido a caráter apresentava o produto e era interrompido por uma voz feminina em off: “é bárbaro!”, no que era imediatamente corrigida pelo mongol irritado: “não, é tártaro!” E assim se fazia a mágica da apresentação e venda de um produto de uma forma muito distante das gritarias “varejísticas” de hoje.

Eram 15 segundos preciosos. Vivíamos, naqueles tempos, as delícias das analogias proporcionadas pelo acúmulo do conhecimento. Apenas assim era possível entender a graça do comercial. Só para constar, os Tártaros eram um povo bárbaro que viveu por aproximadamente cinco séculos, três antes e dois depois de Cristo. Eram mongóis que durante muito tempo foram liderados por Átila, o Huno. Pois é. E tudo isso na TV aberta! Até porque nem havia cabo naqueles idos. E todos comentavam e se deliciavam com a perspicácia do criativo responsável.

Mas tudo isso é passado. Assim como na publicidade, o Brasil regrediu muito naquilo que mais interessa para um país que se pretende sério e respeitado: o conhecimento e o aprendizado. Hoje, quando o acúmulo de conhecimento das novas e nem tão novas gerações beira o zero absoluto, as analogias são impossíveis. Tudo é aquilo por aquilo. Tudo beirando o rés do chão. E quanto mais medíocre, mais valorizado. Tudo arrematado com o contraponto de ferozes ataques a qualquer iniciativa de cultura ou conhecimento coletivo.

Não, não se trata de nostalgia barata. Mas de uma cara constatação consternada de que as coisas desmoronam ao redor enquanto a impotência reina, uma vez que qualquer tentativa de argumento intelectual morre afogada num oceano repleto de ondas violentas de estupidez.

O mal é perspicaz. O mal realmente mau traveste-se de bem e, nesse nosso contexto nacional, apodera-se de medianas melhoras, reflexos de aprimoramentos globais, para criar a ilusão de um país do futuro agora, quando jamais estivemos tão distantes dessa meta. Não há progresso na ignorância. Não há bem-estar na burrice.

Trata-se realmente de um beco sem saída. O atual governo reduziu tudo à essência do nada, de uma verdadeira ode ao não-saber. Já estamos numa ditadura onde dados pessoais privados são manipulados politicamente, onde as instituições republicanas derretem ao calor dos crimes impunes e o culto à personalidade de uma nulidade cresce a passos largos. E o pior: ninguém diz nada. Onde estão nossos intelectuais? Nossos artistas? Nossos pensadores? Ninguém critica. Ninguém levanta a voz, anestesiados que estão pela morfina do “está tudo bem”.

Não. Não está. E, de repente, me pego em situações inusitadas e esdrúxulas que jamais imaginei serem possíveis. Eu, que lutei pelas eleições diretas quando os tanques ainda rondavam as ruas, começo a entender o até então incompreensível apelo aos militares por uma salvação impossível em coisas como a famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de tão triste memória em suas consequências. Como isso pode acontecer?

E é tudo tão claro visto de fora! O partido do governo acusa-se como vítima de uma imprensa que nunca foi tão subserviente ao poder. Tudo estudado. Tudo seguindo uma cartilha espúria de projeto autoritário de longo prazo. E dia a dia a liberdade se esvai com a louvação ao não-pensar.

Fato contemporâneo, o mundo virtual tem papel preponderante nisso. Ainda mais que apenas os corvos da neo-ditadura já aprenderam a utilizá-lo eficaz e adequadamente em seu benefício e em prol de seus planos de poder pelo poder. Para os menos atentos, reparem no final de cada reportagem dos principais jornais on-line. Com o supostamente admirável rótulo da liberdade de expressão, abre-se o terreno da informação a qualquer tipo de comentário, deixando livre o ambiente para a proliferação daquilo de pior que o ser humano produz quando oculto ou em conjunto, ou mesmo quando formam grupos ocultos, incluindo-se aí os partidários da atual ditadura em curso.

Trata-se, esse éter informático, de um universo onde todos dizem o que bem entendem. Reacionários brilham. Ineptos triunfam. Quadrilhas pagas e bem instruídas subvertem a verdade, maltratam-na, matam-na, enquanto caluniam a inteligência. O caráter, berço das diferenças de ideias, jaz inerte numa escuridão sem réstia de luz. E já não há para onde olhar com esperança, com twitters e facebooks praticando estupros consentidos de individualidades por todos os lados.

Vivemos tempos bárbaros. Ou tártaros, não importa. A ignorância está vencendo.


Um comentário:

  1. Amigo,
    o resultado do primeiro turno já aponta para uma visão minimamente otimista, já que a dita "elite privilegiada" deu uma resposta nas urnas diferente da bovinidade esperada.
    Você foi visionário aqui. E me lembro da música do Jorge Ben: "os alquimistas estão chegando, estão chegando os alquimistas"...
    Quem poderá transformar pedra em ouro? Ignorância em esclarecimento?
    Curiosidade e vontade de aprender em virtude, onde até há pouco, parecia um insulto pessoal?
    Vejo uma luz no fim do túnel. A ignorância vai ficar flácida e desacreditada. E com vigor, empreenderemos uma marcha rumo à formação, educação, capacitação, competência, conhecimento e mérito.
    Sei que sou otimista. Mas é que sem esperança os sonhos envelhecem...
    Até arrisco pensar que a corrupção consome 3% do PIB, enquanto a incompetência subtrai 15% do mesmo PIB.
    Porque viver na superífie se a gente pode mergulhar fundo?
    Viver no raso, na profundidade de um pires?
    Melhor sonhar com o molho tártaro, que ele seja bárbaro; e que seja experimentado por não-bárbaros, de uma sociedade esclarecida!!

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