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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Resenhando Hamlet

                  

"What a piece of work is man. How noble in reason. How infinite in faculty. In form and moving how express and admirable. In action, how like an angel. In apprehension, how like a God. The beauty of the world. The paragon of animals. And yet, to me, what is this quintessence of dust. Man delights not me..."

- from Hamlet, by William Shakespeare

Foi-me pedido, em um trabalho acadêmico, para fazer uma resenha de um entre três títulos de filme pré-determinados.

Antes de mais nada, pensei muito ao me atrever a resenhar Hamlet, um dos meus personagens favoritos e com o qual travei contato ainda muito cedo, muito jovem. Li o livro em português, me atrevi no original em inglês, passei pela versão cinematográfica do Olivier e, agora, decidi assistir à versão dirigida por Franco Zeffirelli, com um surpreendente Mel Gibson no papel-título e uma bem escolhida Glenn Close como a Rainha Gertrudes.

Não é meu objetivo, aqui, uma comparação entre essas versões. Cada uma tem seu espírito, seu tempo e seu valor artístico. Zeffirelli persegue uma linguagem mais acessível que faz inteligível para a grande massa textos clássicos e complexos desde seu “Romeu e Julieta”. E apesar de haver uma grande carga de preconceito quanto a isso junto aos puristas, palmas pela direção que torna mais palatável e possível para grande parcela da população o contato com textos e personagens tão ricos.

A partir daí, e ciente do amplo universo de resenhas já existentes sobre a obra em questão que a contam e recontam, decidi por uma dissertação mais simbólica baseada nos meus sentimentos pessoais sobre a história.

Nesse sentido, a frase reproduzida no inicio da página - do original em inglês - traduz, a meu ver, todas as nuances e descompassos que envolvem a percepção humana nessa obra. Hamlet, nesse monólogo, tece considerações sobre o ser humano. Descreve-o como a mais perfeita forma animal, obra-prima de Deus em movimento, expressão e entendimento para, logo depois, ressaltar a sua falta de importância como quinta-essência do pó.

É essa montanha russa emocional e filosófica que faz de Hamlet um dos pilares da literatura mundial e um dos papéis mais complexos de ser interpretado. Da visão do fantasma de seu pai que lhe revela ter sido assassinado pelo próprio irmão à constatação dessa traição do tio com a mãe, o processo de vingança e loucura que acomete o príncipe da Dinamarca é, ao mesmo tempo, tenebroso e sublime. Reflexo claro da definição humana proferida por ele próprio na frase inicial dessa resenha e que faz sua existência insuportável frente à tamanha lucidez.

Na sua insana busca pela vingança ele se vê aprisionado dentro de um labirinto mental e emocional que nunca o leva à atitude suprema que consumaria o seu objetivo principal. O desejo de atender o desejo do espírito do pai é cercado pela moral, pelos pensamentos e pelo intelecto que armam, o tempo todo, ciladas que o levam à espiral de loucura e sanidade que, intercaladas, constroem um texto que avança caudaloso e feroz como as corredeiras de um rio.

Sua loucura, aliás, é ferramenta e destino. Atormentado pela visão e revelações do pai morto, ele se apossa da vertente da demência para poder traçar todos os seus planos de vingança com mais liberdade. Afinal, aos loucos tudo é perdoado e nada é crível. Assim, ele pode falar o que quiser e ouvir conversas e comentários que vão montando todas as peças de seu quebra-cabeças pessoal sem ser importunado. E assim, ainda, ele acaba por se envolver de tal forma em seu plano de justiça que as fronteiras da loucura começam a se tornar por demais tênues.

Em seu caminho, da aparição fantasmagórica do velho rei ao final trágico de toda a família real, nada mais tem consistência. Sacrifica o amor de Ofélia na dúvida sobre a sua lealdade. Num ambiente cada vez mais contaminado pela falta desse sentimento e pelas intrigas incessantes, como saber que é quem? Cláudio, o rei assassino, é a deslealdade personificada. A mãe, Rainha Gertrudes, que é cúmplice e casa-se com o cunhado apenas dois meses após a morte do marido, não é símbolo algum de virtude. A falsa lealdade bajuladora de Polônio e toda a realidade nefasta do dia-a-dia da corte constroem, enfim, o cenário ideal para o questionamento sobre a índole humana e a execução da vingança a qualquer custo.

Nesse caminho, não importa mais matar ou morrer. E é essa solidez de princípios num ambiente formado de hipocrisia e falsidade que faz do príncipe vingador um personagem irresistivelmente sedutor para as platéias. A busca pela justiça, inerente a todos os seres humanos, permeia cada cena e fala da história.

O fato é que, com esse objetivo em mente, não há como voltar atrás. Loucura ou ferrenho apego ao destino lhe dado pelo pai, a trajetória do príncipe Hamlet faz com que, tal como um bobo da corte ensandecido, ele desmonte uma a uma as aparências e artimanhas ao seu redor através de textos revestidos de metáforas que traduzem duras verdades.

A morte de Ofélia afogada no rio, louca de amor e decepção, traz à tona a falta de importância de qualquer outro objetivo de Hamlet que não seja a vingança do pai. O amor, simbolizado na ingênua Ofélia, é afogado junto com a personagem uma vez que não tem lugar no processo.

Acionado o moto-contínuo da vingança, nada mais resiste. Mortes se sucedem. Hamlet mata acidentalmente Polônio, o pai de Ofélia, iniciando o processo real de loucura da sua apaixonada. A partir daí, de modo que os conchavos do rei para matar Hamlet tomam forma, os corpos caem como sinal único daquilo que restará após a vingança.

Os falsos amigos Guildenstern e Rosencrantz, Laertes, o irmão de Ofélia, a rainha-mãe, o rei nefasto e o próprio Hamlet. Todos tombam deixando um rastro trágico de sangue.

Inevitável acompanhar Hamlet sem tomar seu partido, apoiando cada atitude exacerbada e insana na sua busca por justiça. O fiel amigo Horácio, único poupado na sua sanha vingativa, honra a sua lealdade ficando ao lado do príncipe até o final. Horácio simboliza, de fato, a única espinha dorsal consistente em valores humanos numa realidade que se desfaz.

E é de posse desse simbolismo que ele ampara o amigo em seus momentos finais, quando Hamlet profere suas últimas palavras traduzindo o epitáfio perfeito da lápide que sintetiza a tormentosa jornada do príncipe da Dinamarca:

“O resto é silêncio”.
              

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