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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Caminho Suave

       

Sou da época do caminho suave. Para quem não sabe, a Caminho Suave era uma cartilha, instrumento pré-histórico onde muita gente boa aprendeu o be-a-bá.

Mas não me aterei à cartilha nesse momento. Ela entra apenas como um ótimo título para esse papo. Interessante mesmo é que, quem se lembra da Caminho Suave, com certeza se lembra ainda com muito mais ímpeto e carinho da Coleção Disquinho.

Assim como a Caminho Suave nos ensinava a soletrar e os aspectos técnicos da língua e do falar, a Coleção Disquinho nos ensinava fantasia e moral. Sim. Lições de moral embrulhadas em contos infantis numa época onde o planeta ainda não havia sido devastado pela praga espúria do “politicamente correto”.

Senão, vejamos: o lobo era mal. Ponto final. O saci era preto. E preto era preto sem traumas. Na boa. A Chapeuzinho Vermelho andava por lugares ermos. E sozinha. E, como gran finale, acabava por assistir, gratificada, o caçador dar um tiro no lobo travestido de vovozinha e enfiar um facão na barriga do bicho tirando a velhinha lá de dentro. Inteirinha. Tudo preto no branco. Sem patrulhas de gênero ou de cor.

Hoje, o embotamento é que vem travestido do politicamente correto. Nada pior, mais nocivo, do que a total ausência de convicções embrulhada numa convicção sob encomenda. Para frequentar o shopping.

Esse tema veio à minha mente quando, ainda ontem, assisti em um programa de notícias da TV paga (outra evolução para quem se lembra dos controles de vertical e horizontal), uma entrevista junto a crianças do primeiro grau onde elas falavam sobre a importância da água.

Uma pequena, linda e estranha criatura dizia, toda satisfeita, que passou a controlar o tempo de banho dos pais. Havia algo de pernicioso naquela criança, algo de zumbi, de nefasto, traduzido inclusive na clara subversão do respeito relativo ao pátrio poder. A razão para tal determinismo? Porque água era um bem precioso e estava “acabando”. E que, por isso, era responsabilidade de todos a sua preservação e economia. Ela, inclusive, também fecha as torneiras que pingam. Do contrário o desastre seria iminente. Tudo tão correto. Tudo apreendido na escola.

Que bom seria se alguém tivesse a coragem de apresentar claramente para essa nova geração os fatos como são! Mas o que assistimos pacificamente é um festival infinito de irracionalidades e cegueira. A tranqüilidade vem do “politicamente correto”. E, confesso, chego às raias da loucura ao ver a expressão “correção” tão inadequadamente aplicada.

De volta para o futuro: o planeta Terra levou bilhões de anos para construir um sistema hídrico perfeito. E trata-se de um sistema fechado. Não se “cria” água. Não se “acaba” com a água. A água é exatamente a mesma desde que o mundo é mundo. E o mundo é mundo, para nós pobres entidades carboníferas prepotentes, desde que pisamos por essas paragens pela primeira vez, mesmo ele sendo mundo já bem antes.

Não, a água não está acabando, minha pequena garota tomada de infanto-ecologica histeria. Temos é gente demais no planeta. Muita gente para a mesma quantidade de água. E gente mal-educada. Poluente. E não há banho curto que dê jeito. É triste, mas é lei, ensinava minha mãe.

Entretanto, não tocamos jamais nesse assunto. Nada mais politicamente incorreto do que falar claro. Aliás, deixemos bem claro: existe algo mais patético, mais ofensivo intelectualmente do que um crédito de carbono? Como acreditar nisso? Curupira, Caipora, são mais factíveis. Mas essa garota vai comprar um assim que for possível para dormir o sono dos justos. E plantar árvores. Sim, muitas árvores para compensar o rastro deixado pelo avião na última viagem à Disney.

Criança... tome seu banho de meia hora, mas use camisinha. Desenhe na sua folha de papel e plante árvores por prazer e não por culpa. Mas, entre um desenho e outro, um send e outro para a impressora, se instrua sobre métodos anticoncepcionais.

Não há natureza de menos. Há gente demais. E o planeta não suporta. E a natureza reage. E estará exuberante assim que nos retirarmos de cena. Por bem ou por mal. Afinal, o equilíbrio ecológico não é de fora para dentro. O ser humano é o fator desequilibrado da equação do equilíbrio. Simples assim. Matemática elementar.

Mas a patrulha da correção política vai além. Grassa por paragens várias. Começamos a criar no Brasil, por exemplo, um problema de racismo que nunca tivemos nesse cenário trigueiro. Estamos fazendo o tal povo mulato e inzoneiro engolir e aprender à força sobre cotas raciais. Caminho nada suave esse.

Assistimos ainda a propagandas na TV. Todas iguais. E publicitários que debatem sobre a falta de criatividade e pasteurização da mensagem. Óbvio. Quando todos querem ser a mesma coisa, não há como o resultado ser criativo ou diferente. E, na comunicação, é importantíssimo que todos sejam politicamente corretos. Ecologicamente equilibrados.

Ah, como seria interessante, criativo e muito mais eficaz para o bem estar mundial ver uma marca de cosméticos apregoar “use nossos produtos e nós distribuiremos 10 kits contraceptivos em seu nome para o equilíbrio do planeta”! Mas preferimos a falseta das árvores.

Aliás, no segmento imobiliário da cidade de São Paulo, todos os lançamentos possuem, embutidos, bosques maravilhosos e ricos de vida natural. Se seguirmos nessa trilha, teremos muito em breve uma metrópole de parques e matas! Puro embuste.

E tudo alinhavado com a linha insossa e cinza do politicamente correto. Afinal, se não é possível tocar-se na ferida real, se são pessoas que consomem, trabalham e compram mais, e se quanto mais, melhor, dane-se a água! Troco sua culpa por uma muda de eucalipto.

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Para quem não viveu, os vinis da Coleção Disquinho eram coloridos. Como eram coloridas as suas histórias e suas lições. Totalmente incorretas para os atuais parâmetros. E como era gostoso ouvi-los! Além da já citada Chapeuzinho (com o tal lobo que fazia mingau de criancinhas), tinha a Dona Baratinha (aquela da fita no cabelo e dinheiro na caixinha, prontinha pra comprar um marido), a Branca de Neve (que dormia com sete anões), os Três Porquinhos, a Cinderela, quanta cor, enfim...

Que pena daquela garota do telejornal que tem que se contentar com um crédito de carbono!


       

2 comentários:

  1. tudo o que escrevi a respeito dessa crônica quando li, ainda é pouco diante da vontade de comentar mais e mais. Sua congruência distoa da multidão de gente querendo ser "gente boa"e nessa pele medíocre, não conseguir assumir uma postura mais lúcida.
    Uma pena...
    Você é raro. E é meu amigo. Ainda bem.

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  2. Ah amigo...
    ontem soube de uma história com a mesma cartilha, o Caminho Suave que aconteceu no interior do Acre. Não tive como não me lembrar de você...
    Trata-se de um rapaz, hoje adulto, com onze irmãos e muita, muita carência. Todos os doze eram criados pela mãe, sabe-se Deus como e onde Judas perdeu as botas...
    E, na Cartilha, você deve se recordar, que o M era de maçã. Ele perguntava pra todo mundo o que era uma maçã e qual era o seu gosto e, sem exceções, tanto a professora quanto a mãe e os irmãos mais velhos recriminavam a pergunta incansável de menino-perguntador. Um dia, uma irmã mais velha estava sendo paquerada na praça da cidadezinha mais próxima e o rapaz, mordeu uma maçã e ofereceu para ela, se ela gostaria de experimentar a maçã. Ela agarrou a fruta da mão dele e saiu correndo em direção à casa deles. Chegou lá, chamou a mãe, que chamou a todos e, depois de vê-la, dividiu em 12 partes, mesmo mordida. O filho quis saber o porquê dela nem querer experimentar e a mãe dizia:...imagina, já comi. Sei bem o gosto que tem. E ele tem certeza de que ela morreu sem nunca ter experimentado sabor da maçã. Que tal? Que linda mãe, não? Que história... e imagina o efeito de uma maçã e o impacto dela, na vida de alguns...?

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