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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Um TAPA na resenha

          

Amigos a gente não critica em público. Na amizade, o que ocorre são toques e opiniões carinhosamente colocadas ao pé do ouvido. Por isso, é sempre um alívio quando pessoas de quem a gente gosta acertam naquilo que fazem.

Foi dentro desse contexto que escrevi o texto a seguir. Uma bela experiência protagonizada por queridos amigos:



Cloaca (Maria Goos) – Resenha

CLOACA: n substantivo feminino

1. fossa, canal ou cano destinado a receber dejeções
2 . coletor de esgoto
3 . vaso sanitário; latrina
4. escoadouro de águas; vala, sarjeta
5. depósito de imundícies; monturo
6 . tudo o que é imundo, que tem mau cheiro
7 . nos anfíbios, répteis, aves e muitos peixes, câmara comum onde os sistemas digestivo, excretor e reprodutor descarregam seus produtos.

(Dicionário Houaiss)


“Vocês não vão me dizer que existe um significado real para a expressão ‘cloaca’... Existe?”

A indagação do político Jan (André Garolli) sobre a expressão usada como saudação pelos quatro amigos de juventude, que frequentaram juntos a faculdade, além de ressaltar toda a sua mediocridade pessoal e profissional dá o tom do argumento dessa peça de autora holandesa sobre o reencontro e balanço de vida entre eles.

De fato, essa indagação, que ressurge duas ou três vezes durante o decorrer do texto, dá pistas profundas daquilo que corre nos subterrâneos daquele encontro que não consegue acobertar as suas faces de desencontro. Além de Jan, Tom, advogado viciado em cocaína (Dalton Vigh), e Marten (Brian Penido Ross), diretor de teatro às vésperas de uma estreia, se reencontram na casa de Pieter (Tony Giusti), um funcionário público gay que se envolve nas relações corporativas que lhe facilitavam o acesso ao arquivo de objetos da prefeitura e acaba acusado de apropriação indébita de obras de arte.

É essa acusação, que coloca em xeque a vida atual e o destino de Pieter, que acaba por reunir novamente os amigos. Jan vive uma crise no casamento exatamente quando, por conchavos políticos, está prestes a se tornar ministro. Para manter as aparências durante o processo, pede refúgio na casa de Pieter. E o fato de estar sendo recebido na casa de um amigo homossexual puxa a primeira ponta de um novelo onde se emaranham preconceitos, interesses, desajustes e frustrações e onde todas as facetas de cada um dos personagens se expõem como metal às intempéries e ao tempo, fazendo com que a amizade não resista aos desgastes e, assim como a ferrugem destrói o mais sólido dos metais, as relações acabam por se dissolver.

O que assistimos durante quase duas horas, acompanhados por uma iluminação exata e emoldurados pelo belíssimo cenário de Lola Tolentino, são diálogos aparentemente superficiais, mas que possuem a profundidade natural dos abismos pessoais de cada um de nós. Os fragmentos de vida expostos sem pudor mostram quatro homens que não chegaram a se completar. São esboços daquilo que poderiam ser ou ter se tornado e, nesse contexto, a crise masculina da meia-idade, os projetos desfeitos, os vícios, as projeções dos egos e os conflitos interiores desnudam-se de forma muitas vezes egoísta e alienada.

Pieter carrega a culpa e o sentimento de alvo social resultantes de sua opção sexual. Jan é..., bem, Jan é um político. Amoral e sem escrúpulos, é aquele que, mesmo como hóspede, reforça e amplifica os temores e sentimentos negativos de Pieter sobre ele mesmo. Marten, mais impermeável às críticas ácidas dos amigos sobre os seus espetáculos, tenta reforçar as suas estruturas e manter-se de pé através de uma pretensa qualidade de potência sexual que começa a apresentar falhas. Já Tom, o advogado recém-saído de uma internação e da reabilitação, é o grito de revolta de toda uma vida sintetizado no vício da cocaína e reforçado pelo porte físico e pela brilhante atuação de Dalton Vigh.

Nessa ciranda adulta dançada na sala de Pieter fica claro que, se há algo que resta daquilo que um dia foi a sólida e intensa amizade entre aqueles ex-jovens, é a sua senha pessoal. A saudação Cloaca!, mesmo sem que os personagens se apercebam disso, é o chamado e o grito de guerra que exala e anuncia, a cada cena, os perfis dos esgotos interiores de cada um dos envolvidos.

Sob a direção sempre certeira de Eduardo Tolentino, o Grupo Tapa acerta mais uma vez. A cena final que explicita o destino de Pieter e a responsabilidade de cada um dos amigos nesse desfecho arremata um espetáculo onde o riso se dá sempre através de maxilares cerrados. Não há espectador, na faixa dos 40 anos, que não saia com um gosto amargo na boca. Um gosto de passado e sonhos frustrados que consideramos pessoais e intransferíveis mas que, em cena, acabam colocados como fato comum à categoria humana.

Na saída do teatro, os acordes e a letra de let it be funcionam quase como um conselho pessoal a cada um atingido pelo vórtice de sensações onde amizade, interesse e egoísmo são equilibristas em corda bamba.

Deixe estar.

     

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