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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Resposta tardia a Clarice Lispector


     
  Autoria José Castello       No dia 13 de dezembro de 1969, Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica que terminava com um pequeno tópico, a que chamou Uma Pergunta. São apenas duas frases: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?" Relendo as crônicas de Clarice, outro dia, esbarrei com essa pergunta. E tive, por instantes, a sensação de que era dirigida a mim. Sei que isso é um exagero, mas a verdade é que senti o que senti, então o que posso fazer? E resolvi, 30 anos depois, tentar responder à maldita pergunta que ela me deixou.

Volto à pergunta: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, quando estamos vivendo - quando nos entregamos furiosos à ação, ou quando nos poupamos dela? Mas o mais importante está, talvez, na segunda parte da pergunta. "Que é que estou exatamente querendo saber?" Tenho a impressão de que, nessa segunda pergunta, sem que a escritora soubesse disso, já estava a resposta à primeira. Quantas vezes nos afogamos em perguntas inúteis, que só nos destroem em fogo brando?

Há dois dias, vivi um pequeno episódio que, só agora percebo, evoca a pergunta deixada por Clarice. Um simpático jornalista da TV me procurou para me convidar para a gravação de um programa, em que eu deveria debater um certo tema literário, com uma eminente doutora da universidade. Era um convite honroso e tratei de desmarcar compromissos de agenda para atendê-lo. Mas, assim que disse sim, uma pressão sem nome passou a me oprimir. O jornalista era gentil, a professora eminente, o convite era generoso - mas e eu? E cheguei à pergunta de Clarice: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, que cabiam em meu pequeno caso: era ir, ou não ir?

Ainda me debatia na dúvida quando meu amigo Wilson Bueno me telefonou e, inocente, recordou uma pequena história relatada por Guimarães Rosa. É mais ou menos assim. Caminhando pela Praça XV, um homem é avisado por alguém de que deve retornar urgente a Niterói, porque sua casa está incendiando e sua mulher corre risco de vida. Sem pensar, o infeliz se joga na Baía de Guanabara e começa a nadar. Está no meio do caminho quando se dá conta: vive num apartamento, não mora em Niterói e não é casado. Tomado por outro, sem pensar, ele aceitou o papel que o gentil desconhecido lhe dera e, ato contínuo, o interpretou.

Sem saber disso, meu bom Bueno me fez ver que eu não podia aceitar o convite do jornalista de TV. Foi muita gentileza dele, e lhe sou muito grato por isso, mas houve ali um erro de pessoa. Não, não sou eu a pessoa adequada para cumprir o papel de debatedor com a respeitável professora. Estamos, ela e eu, em mundos diferentes, usamos línguas diferentes e, mesmo achando que falaríamos da mesma coisa, estaríamos falando de coisas diferentes. Seria apenas uma mentira gentil. Nesse meu caso particular, aceitar o convite seria fazer de mim algo que não sou; e não aceitar, como preferi fazer, foi uma maneira de me preservar, de saber contemplar o mundo e esperar o momento oportuno. Pois nem tudo o que é bom, e o convite era muito bom, é oportuno.

Mas, outras vezes, tudo de que precisamos é fazer. Lembro-me aqui de um sonho impressionante que tive anos atrás. Eu, desesperado, me perguntava: "Por que nada acontece?" E uma voz espantosa, dessas que ecoam nos filmes bíblicos de Hollywood, me respondeu: "Nada acontece porque não acontecem as coisas que acontecem para que as coisas aconteçam." Sei que a frase foi essa porque, assustado, acordei no meio da noite e a anotei na margem de uma revista. É uma frase tortuosa, e me espanta que, dormindo, eu tenha podido concebê-la. O inconsciente é mesmo um bicho autônomo, que age sobre nós, suas pobres vítimas.

Trinta anos depois, Clarice, o que eu queria te dizer é: a primeira pergunta é falsa, e a resposta está na segunda. "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" você perguntou. A resposta é: "Que é que estou exatamente querendo saber?" Porque, melhor que perguntar, é viver, ainda que seja à beira de um lago contemplando em silêncio a água imóvel.

      

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