Sou um dos privilegiados que, mesmo numa megalópole, possui o privilégio do acesso fácil a uma área verde. No caso, o Ibirapuera, local lindo com nome sonoro e tradução absolutamente descritiva e desprovida de qualquer glamour na nossa língua-mãe tupi: pau podre.
De fato, basta uma chuvinha para que o parque resgate sua característica original e natural de brejo. É quando se percebe a impotência do homem em relação às mudanças das quais se considera capaz sobre a natureza. Mas, entretanto, não é disso que se trata esse texto. Fica para a próxima. Voltemos à corrida.
Correndo, pois, pela pista de cooper do parque, lembrei-me de que, algumas semanas atrás, estive no Rio de Janeiro a trabalho. E, como sempre que possível não descuido da minha corrida diária, assim o fiz na orla de Ipanema e Leblon tão familiar e conhecida desde meus tempos de infância.
Foi a partir dessa reminiscência de tão recente memória que me veio à mente uma discussão sobre um tema banal que ocorreu por lá e que se resumia à questão sobre o que é melhor, correr na praia ou no parque?
Obviamente que a primeira resposta, inclusive daqueles que moram em São Paulo e possuem um parque na porta de casa como era o caso do meu interlocutor, é líquida e certa: Praia. Pois bem; Ocorre que entre o escorrer de uma gota de suor e outra, dei-me conta que o banal escondia um pressuposto bem mais interessante que possui uma grande influência no imaginário humano e, por consequência, nas nossas escolhas e sonhos cotidianos.
Para quem não conhece o meu aeróbico espaço, imagine-se o ambiente comum a tantos outros parques. A pista onde eu corro é guardada por gentis sombras de árvores frondosas que deixam a temperatura amena e agradável. Os carros que circulam no entorno do ex-brejo mantêm-se a uma distância tal que faz com que seu ruído seja apenas uma lembrança sutil. E, para completar, sabiás, bem-te-vis e outros pássaros dão o ar de uma graça despudorada característica daqueles animais que já se acostumaram com a presença humana e não estão nem aí para ela. São passarinhos cosmopolitas, que cantam e tocam a vida sem se incomodar com o que outras criaturas estão fazendo ao lado.
Transportemo-nos agora, pois, para minha corrida na sem dúvida visualmente maravilhosa Ipanema, com Dois Irmãos ao fundo. Trata-se de um cartão postal lindo de se ver, e péssimo para se correr. O sol é inclemente, o ruído dos carros e ônibus que passam a apenas metros (às vezes centímetros) da ciclovia é ensurdecedor e trazem como brinde muita, muita fumaça. E a praia, idílica imagem, lá longe, parece um filme mudo de ondas silenciosas, uma vez que todo o ruído que poderia ser relaxante do quebrar das águas não é páreo para o motor a combustão.
Fato claro é que estamos tratando aqui de grandes cidades como São Paulo e Rio, e não qualquer um dos muitos lugares idílicos que ainda restam por essas paragens tropicais. Entretanto, paralelos colocados, como explicar o fascínio pelo correr na praia? Foi nesse ponto da indagação que a resposta veio nítida à minha mente: o fascínio pertence não ao ato, mas ao simbolismo. Quando as pessoas falam ou até mesmo praticam o correr na praia (e são muitas), transportam-se para uma grande ilusão coletiva, um cenário cognitivo que está colado lá nas mais profundas paredes do ser e que remete a uma praia deserta, cheia de coqueiros, com brisa e sons naturais. Trata-se de uma sensação ancestral que se transforma em experiência muitas vezes nunca tida, e que é prima-irmã do cavalgar na praia, sem sela ou laços, na mesma superfície de areias finas embrulhada de vento e liberdade, entre tantas outras.
Nisso tudo, o mais interessante é como nos deixamos enganar pacífica e tranquilamente por esse mecanismo que nos remete ao símbolo, à sensação, e não ao fato. Ao “correr na praia”, mergulhamos em um universo muito mais amplo e profundo que ignora as grandes avenidas e os sinais aniquiladores do progresso representado pela urbanidade. Temos essa facilidade. Colecionamos arquétipos que nos fazem aceitar e acreditar que vivemos determinadas experiências mesmo que a realidade seja muito distante daquilo que imaginamos, apenas aproveitando-nos de um elemento lúdico que faça parte de uma determinada fantasia comum.
Nessa mesma linha encontram-se os lugares da moda e o viajar no feriadão, por exemplo. O que explica o ato de transportar-se com armas e bagagens, família, sogra, cunhados e periquitos para um final de semana prolongado de filas e privações nos grandes balneários? E aquele lugar que não é tão bom assim, mas que é fundamental para seu “curriculum social” que você tenha estado lá? A resposta está no intangível. Na ilusão coletiva que reside muitas vezes no universo da irracionalidade. E na rede fina das aparências sobra apenas o “Estive em tal lugar no feriadão e foi ótimo! Você perdeu!” ou “Você ainda não esteve nesse lugar? Precisa ir. É imperdível!!”
Pois sim, a existência humana é, definitivamente, surpreendente. Como ocorre na circunstância de uma veia obstruída no sistema sanguíneo, o viver encontra outros caminhos que fazem correr sua seiva para que a essência da alma permaneça firme e angarie suas recompensas. Trata-se de mágica extra-humana. Ilusionismo que faz com que a vida se perpetue com o conforto mínimo de experiências que possuem sua parcela de êxtase encravada num parecer - ao mesmo tempo lúdico e irreal - que extrapola a experiência em si.
Ah, o ser humano... Quanto pensar numa simples corrida por um brejo disfarçado!
querido amigo do meu coração...hei de concordar com você quando a praia é no Rio de Janeiro...rs.
ResponderExcluirEu sei que nem gosto assim de correr, mas o ato de andar pela praia aqui em Jurerê, com a orquestra de passarinhos da manhã, o silêncio entrecortado pelas ondas elegantes, suaves, jamais ofendidas, todas as conchinhas no lugar certo, no chão, de onde nunca deveriam sair, somado ao horizonte sem fim, com jeito de mundão...ahhhhh...